De câncer a Alzheimer, máquinas engolíveis,
100 vezes menores que uma partícula de poeira, tratam doenças
desafiadoras e consertam o corpo por dentro
Por
Ana Carolina Leonardi
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18 ago 2017, 15h19 - Publicado em 18 ago 2017, 15h13
SUPER INTERESSANTE/ABRIL
Na noite de 29 de dezembro de 1959, a Sociedade Americana de Física,
ainda em clima natalino, se reuniu para assistir a Richard Feynman. O
cientista estava prestes a ganhar seu Prêmio Nobel em eletrodinâmica
quântica, mas preferiu provocar seus pares com um tema totalmente
diferente.
Feynman queria que sua plateia imaginasse o potencial de
“engolir um médico”. “Imaginem um cirurgião mecânico dentro de um vaso
sanguíneo, indo até o coração e dando uma olhada nas redondezas”,
Feynman disse, numa época em que a palavra “nanotecnologia” nem existia.
“Ele descobre uma válvula defeituosa, tira uma faquinha e remove o
problema.”
Quase seis décadas depois, a visão de Feynman está ganhando
contornos reais, e num lugar inusitado: à beira do Mar Vermelho. Na
Arábia Saudita, a pesquisadora Niveen Khashab se inspira no trabalho de
outro vencedor do Nobel para criar nanorrobôs que diagnosticam e tratam
as doenças que desafiam as técnicas convencionais, como câncer e
Alzheimer.
A história de Khashab começa no Nobel de Química de
2016. Ele foi dado ao seu orientador, Sir Fraser Stoddard, que conseguiu
criar conseguiu criar os menores elevadores e alavancas do mundo,
manipulando átomos. Ele chamou sua invenção de máquinas moleculares.
Khashab pegou gosto por máquinas pequenas, na escala nano (veja mais no infográfico abaixo),
e começou a explorar seu potencial na medicina. Mas em vez de
sintetizar novos remédios, seu foco é na entrega dessas substâncias.
É que a entrega de um medicamento é mais importante do que
parece. Pense na quimioterapia, por exemplo. Ela é eficaz, mas
ineficiente: mata células doentes, só que destrói as boas também. “A
droga vai para todo canto: no estômago, traz náusea, no cabelo, traz
queda. Muito pouco chega no tumor em si”, explica a pesquisadora d
a Universidade Rei Abdullah de Ciência e Tecnologia (Kaust, na sigla em inglês).
Engolindo uma nanopartícula cheia de quimioterapia, que só se abre no
lugar exato do câncer, refinar muito sua pontaria da quimioterapia, sem
alterar a droga em si.
CÂNCER
Tratando tumores com (nano)GPS
Só tem um problema nessa história. Os nanorrobôs são
basicamente moléculas. Moléculas são pequenas demais para carregar uma
câmera ou algo assim. Então como é que eles “sabem” em qual parte do
corpo devem agir? A ideia, afinal, é que a liberação só aconteça no
lugar certo, para evitar danos em outras regiões.
Uma das soluções foi o magnetismo. Dá para ter
componentes metálicos (geralmente ouro) nessas moléculas: assim, elas
podem ser guiadas pelos pesquisadores de fora do corpo, com uma espécie
de imã. Além disso, os cientistas instalaram “portas” nos nanorrobôs.
São elas que permitem uma medicação entregue à la Netflix: on demand.
Essas portas, é claro, precisam ter sensores para saber
quando abrir e quanto fechar. E mesmo cegos, os nanorrobôs percebem a
mudança de ambiente. As portas podem ser acionados por mudanças de pH,
por exemplo. Seu estômago é ácido. O intestino delgado é alcalino.
Pensando em câncer de intestino, por exemplo: o pesquisador,
então, pode preparar uma porta que fica fechada no agressivo ambiente
estomacal, mas que se desfaz assim que ele chega no intestino. Remédios
convencionais, diga-se, já fazem esse truque. A diferença é que as
tampas das nanomáquinas podem responder a mais diferenças de ambiente
dentro do organismo.
Já existem portas de nanorrobôs que se abrem com mudanças
de temperatura – o que é bem útil para o câncer, já que as células em um
tumor são levemente mais quentes que as saudáveis.
O avanço mais recente do laboratório da Kaust foi tornar
essas nanomáquinas responsivas a outro agente: a luz. Elas podem ser
ativadas por médicos usando tipos de luz que penetram o corpo, como a
infravermelha. O próximo passo é tornar o processo reversível: portas
que abrem com a luz e voltam a se fechar quando ela desliga.
Nem só de remédio se faz um minidoutor. As nanomáquinas
também realizam exames e podem carregar material fluorescente. Dentro
do organismo, ele se ilumina quando exposto à luz infravermelha, o que
pode revelar o tamanho preciso de um tumor.
Duplo agente
As partículas também podem ter dupla função: aplicar o
medicamento e, ao mesmo tempo, fazer um exame. Em testes com células de
tumor pancreático, os pesquisadores da Kaust colocaram duas substâncias
diferentes na mesma nanopartícula. Metade era doxorrubicina, um
quimioterápico. A outra, um corante fluorescente, o iodeto de propídio.
Esse corante não consegue penetrar em células saudáveis. Logo, todas as
que aparecem “pintadas” estão com problemas.
Em um experimento com ratos, o nanorrobô conseguiu levar as
duas cargas com segurança até o alvo. O quimioterápico conseguiu matar
70% das células cancerosas – e o iodeto ajudou a revelar o sucesso do
tratamento.
A nanoquimioterapia da Kaust está na etapa dos testes com
animais. Mas resultados promissores também foram encontrados com a nova
queridinha das terapias contra o câncer: a imunoterapia.
O menor superherói do mundo
Somos tão vulneráveis a tumores porque eles enganam o
sistema imunológico, que não consegue reconhecer que ele é uma ameaça.
Esse processo é chamado de checkpoint imunológico. Mas ele só acontece
quando há contato físico entre o tumor e a célula. As drogas de
imunoterapia, então, criam uma espécie de barreira entre o tumor e as
células de defesa. Nisso, o corpo reconhece o câncer e solta os
cachorros do sistema imunológico para cima da doença.
Mas, tal qual a quimioterapia, o tratamento não age só no
lugar desejado. Em até 30% dos casos, o sistema imunológico entra em
surto e reage a tudo: até aos próprios órgãos do corpo. É comum atacarem
o pâncreas, o que causa um quadro similar a diabetes tipo 1 e, nos
casos mais graves, parada cardíaca. Cinco pacientes (cujo câncer estava
em remissão) morreram desse jeito no ano passado.
Nessa cena de tragédia, entra o menor super-herói do mundo.
Os primeiros testes com ratos terminaram há alguns meses. As
nanopartículas, carregadas com medicamentos de imunoterapia, controlaram
a liberação dos remédios na região específica do câncer. “Isso impediu
que o sistema enlouquecesse”, conclui a professora Khashab.
Nano
As máquinas tem de 80 a 100 nanômetros
1.000 vezes menores que a espessura de um fio de cabelo
15.000.000 vezes menores que uma pulga
Híbridos
O nanorrobô é feito de organossílica, uma versão modificada do óxido de
silício. O material é poroso e resistente, mas também responde a
estímulos do ambiente e é biodegradável
A entrega inteligente
No laboratório, eles são mergulhados em líquidos que contêm
medicamentos. Uma vez carregados, vão para dentro do corpo aguardar
“instruções”.
Navegação: Os cientistas guiam os robôs como em um videogame
¿ mas, em vez de um joystick, manipulam um campo magnético, que pode
direcionar milhares de máquinas, de uma vez só.
Inserção: É eletroestática que mantém o porta-malas do robô
lacrado até ele chegar ao alvo – o núcleo recebe carga positiva e a
tampa tem carga negativa. Na hora H, os cientistas iluminam a área da
doença com laser. A luz inverte a carga da tampa. As cargas se repelem, a
tampa é ejetada e o remédio sai.
Utilidades :Para facilitar diagnósticos, os robôs entregam
corantes que revelam a área exata de tumores. No futuro, poderão fazer
biópsias: hoje, eles já capturam e transportam pedacinhos de células
humanas.
ALZHEIMER
Com a faca na mão
Vale lembrar que no início do texto, o cientista Richard
Feynman queria mais que um comprimido inteligente. Ele propunha um
pequeno cirurgião. E é exatamente assim que as nanomáquinas planejam
tratar o Alzheimer.
A doença é causada por proteínas que se acumulam
descontroladamente, danificando células cerebrais – pelo menos, essa é a
teoria mais aceita. Essas proteínas são chamadas de beta amiloides. A
estratégia das nanomáquinas é ao estilo Rambo: ela chega destruindo
essas proteínas acumuladas e desafogando o cérebro.
O problema é chegar no cérebro. É que esse órgão é muito
esperto: ele se isola de todas as porcarias que colocamos no corpo e que
vão parar no sangue. A barreira hematoencefálica filtra tudo que sobe
da corrente sanguínea em direção à massa cinzenta. Poucas substâncias
têm passagem liberada. Mas uma delas é o colesterol.
A equipe de Khashab, então, usou um colesterol
fake
e fez as nanomáquinas anti-Alzheimer com ele. Como no caso do câncer,
elas carregam corante fluorescente. Chegando nos emaranhados do
Alzheimer, fazem tudo brilhar. Lá de fora do corpo, os médicos acendem a
luz infravermelha. Veem onde está o problema e – BOOM. A segunda carga
da nanomáquina é um pedacinho de ouro. A luz infravermelha explode o
núcleo de ouro, esquenta a temperatura do local e o calor destróid as
proteínas que causam o Alzheimer.
DIA A DIA
Antibióticos em equilíbrio
Mas não precisamos ir tão longe quanto e o Alzheimer o
câncer: atire a primeira pedra quem nunca esqueceu de tomar antibiótico
na hora certa. Isso não só atrapalha na recuperação como facilita o
surgimento das famosas superbactérias.
Seu antibiótico é dividido em todas essas doses porque
qualquer tratamento funciona melhor com estabilidade contínua. Em um
mundo ideal, o remédio chegaria ao sangue na concentração certa e
manteria esse nível até o fim do tratamento. Mas seu corpo está fica, o
tempo todo, tentando se livrando de substâncias estranhas. A gambiarra
dos médicos, então, é dividir o remédio em várias doses, de modo que a
quantidade de droga agindo no corpo seja a mesma o tempo todo.
É esse delicado equilíbrio que você estraga ao pular uma
dose de remédio. Já com um sistema inteligente para a entrega das
drogas, a coisa muda de figura. Em vez de ter de tomar os antibióticos
na hora certa, bastaria engolir um nanorrobô cheio de antibiótico, e ele
vai despejando a substância nos intervalos exatos.
Alergia e pressão alta
Esse tipo de tecnologia também pode permitir adaptações
malucas nos medicamentos: já reparou como sua alergia piora à noite?
Hipertensão, artrite, angina, AVCs e até tumores têm picos de atividade
dependendo da hora do dia. Adaptar as nanomáquinas para responder não
apenas à luz, mas também a estímulos do seu relógio biológico, pode
abrir espaço para a cronoterapia, que visa tratar doenças de acordo com a
“hora do rush” de cada uma.
O problema do nanolixo
Uma vez que o nanorrobô cumpre sua missão, surge um outro
problema: o que fazer com ele depois? Como descartar o bichinho? Um dos
grandes riscos é que o corpo encontre dificuldade na hora de
metabolizá-los – ou seja, de quebrar as moléculas deles em partes bem
pequenas, que possam ser eliminadas com facilidade. Sem isso, as
maquininhas podem se acumular no fígado ou nos rins, prejudicando o
organismo todo.
Para evitar isso, os cientistas têm desenvolvido nanorrobôs
biodegradáveis. O segredo, aí, é construí-los à imagem e semelhança das
moléculas mais nobres do universo conhecido: as de DNA.
O DNA não compartilha elétrons entre suas moléculas. Isso
tornaria a ligação entre elas rígida demais. No lugar, elas têm
interações mais fracas, como pontes de hidrogênio. São fáceis de montar e
desmontar. Graças a essa característica, aliás, o DNA forma estruturas
complexas.
As nanomáquinas estão sendo projetadas para ter a mesma
versatilidade: montam-se automaticamente, como peças de um
quebra-cabeça, e também se desintegram sozinhas depois de um tempo, de
modo que não se acumulem no corpo.
Cirurgia, medicação, diagnóstico. Enfim: é difícil prever
quais dessas aplicações terão o melhor potencial em testes com humanos.
Para a nanoquimioterapia, Niveen Khashab é otimista. Sua previsão é que,
entre sete e dez anos, seu sistema comece a ser usado em formulações
médicas.
Mais do que oferecer soluções imediatas, porém, as
nanomáquinas apontam uma tendência. Como disse Feynman em 1959: “Há
muito espaço para a ciência lá embaixo [na escala molecular]”. Hoje,
esse espaço já conta com a elite da ciência, e promete para a medicina
um futuro grandioso, ainda que cada vez mais diminuto.
Niveen M. Khashab nasceu no Líbano. Começou sua carreira nos EUA, na
Universidade da Flórida.
Como pesquisadora, foi orientada por Sir Fraser
Stoddart, vencedor do Prêmio Nobel. Em 2009, escolheu voltar ao Oriente
Médio, convidada pela Kaust. “Queria fazer parte do esforço de mostrar
um outro lado da região”, afirma. Por seu trabalho com o “médico
engolível”, recebeu o Prêmio L’Oréal-Unesco Para Mulheres na Ciência,
agraciado às pesquisadoras que mais impactaram suas áreas de estudo.
https://super.abril.com.br/ciencia/querida-engoli-o-medico/