Por Duda Menegassi
- segunda-feira, 07 agosto 2017 19:22
O guia Bruno lidera o grupo na travessia por entre os horizontes de montanha. Foto: Duda Menegassi.
A palavra de ordem no Parque Nacional da Serra do Cipó,
em Minas Gerais, é andar. Para chegar em alguma das cachoeiras da
unidade, por exemplo, o visitante é obrigado a encarar no mínimo 7 km de
caminhada. A vocação não poderia estar mais clara com a implementação
de uma trilha de longo curso. O trekking
de 40 km tem como companhia constante as nuvens, o céu e as montanhas.
Para onde quer que se olhe, lá estão esses três personagens, os
protagonistas da travessia. E os montanhistas não são mais que
coadjuvantes privilegiados da imensidão mineira.
Os caminhos de horizontes vastos foram o palco para quarta travessia comemorativa do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
O aniversário de 10 anos do órgão ambiental foi celebrado por um grupo
de aproximadamente 30 pessoas. Entre elas estavam o coordenador geral de
Uso Público e Negócios (CGEUP) do ICMBio, Pedro Menezes; o gestor do parque, Flávio Cerezzo; além de representantes do Instituto Estadual de Florestas (IEF) de Minas Gerais e das prefeituras de Jaboticatubas e Santana do Riacho, municípios do entorno.
A caminhada soma 40 quilômetros e
percorre cenários de Cerrado, de campos rupestres na altitude, e termina
com um gostinho de Mata Atlântica, no sopé do povoado de Serra dos
Alves, no limite sul do parque. A Serra do Cipó é uma zona de encontro entre os dois biomas, com o bônus da altitude, que transforma a unidade em área com grande incidência de endemismos,
ou seja, de espécies que são exclusivas daquele habitat. Além disso, o
Cipó é parte da grande cadeia de montanhas da Serra do Espinhaço,
considerada a única cordilheira do Brasil. E que, em 2005, ganhou o
título de Reserva da Biosfera e o reconhecimento de “berçário das águas”.
Prontos para conhecer de perto a
biodiversidade e beleza cênica do parque, iniciamos a travessia na manhã
de uma sexta-feira de julho (14/07). No roteiro, três dias de trilha
nos esperam. A primeira etapa é a mais longa, com 17 quilômetros. O trekking começa em Alto Palácio, próximo a uma das bases de brigadistas, onde uma placa sinaliza o começo do percurso.
Placa que marca o início da travessia, em Alto Palácio. Foto: Duda Menegassi.
O dia amanheceu com o frio típico da serra, mas rapidamente esquentou
quando começamos a movimentar o corpo. A travessia já começa nas
alturas, a 1.350 metros de altitude, mas os primeiros 6 quilômetros são
de subida, ainda que gradual. Enquanto subíamos, o vento gritava nos
nossos ouvidos e nos empurrava, ora pela frente, ora pelos lados,
infelizmente nunca pelas costas, para nos impulsionar para cima. Guia de
ecoturismo
na região há 10 anos e voluntário do parque, Bruno estimou a velocidade
do vento em aproximadamente 29 nós, algo em torno de 54 km/h. Elemento
comum na serra, o vento forte adicionou um charme aventureiro à
travessia.
Charmes, aliás, não faltam no percurso. Como um intrigante círculo de
árvores maiores, destoantes e indiferentes à vegetação baixa do
entorno. Provavelmente uma mata de galeria, usufruindo dos privilégios
de uma das incontáveis nascentes da Serra do Cipó.
Por volta das 11h, depois de 6.5 km de caminhada, começamos a descida
que alcançará seu ápice, ou melhor, seu sopé, no Vale do Travessão, uma
das paisagens mais famosas do parque nacional. No meio do caminho,
entretanto, está um outro atrativo, menos conhecido entre os visitantes:
pinturas rupestres. Em uma solitária e proeminente pedra, que com
certeza passaria batida se Bruno não tivesse chamado nossa atenção, os
desenhos de cor alaranjada retratam veados e o que parece ser um canguru
(?!) ou um cavalo – mas quem sou eu para julgar os talentos artísticos
do homem primitivo? Datadas com idades entre 8 e 2 mil anos, as pinturas
revelam o passado da região, onde existem registros humanos de 12 mil
anos atrás.
Pinturas rupestres são um atrativo inesperado na travessia. Foto: Duda Menegassi.
Em um tempo anterior à especulação imobiliária, o homem primitivo com
certeza soube escolher bem onde morar. Isso porque, a apenas 1,5 km
dali está o Vale do Travessão. O nome é uma referência ao seu histórico
como lugar de passagem, por onde era possível atravessar o cânion no
sentido norte – sul, como fazemos agora. O vale também representa um
divisor de bacias hidrográficas que separa as águas do rio São
Francisco, a oeste, onde predomina o Cerrado; e as do Rio Doce, a leste,
zona de domínio da Mata Atlântica.
Nada melhor descreve o Vale do Travessão do que: impressionante. Os
paredões de rocha se precipitam sobre o vale, soberanos, enquanto o rio
do Peixe serpenteia lá embaixo, minúsculo entre os gigantes de pedra.
Impressiona também a vegetação, que não se intimida, e sobe das margens
do rio aos cumes, desfazendo com o verde a sobriedade das montanhas.
Depois de descer aos 1.000 metros de altitude para atravessar o vale,
é hora de recomeçar a subida e voltar às alturas. Faltam 7,5 km para
chegarmos no ponto de pernoite, a Casa de Tábuas. Enquanto subíamos a
serra, o dia nublado permitiu frestas de sol e o resultado dos fechos de
luz por entre as nuvens iluminando e sombreando aquele cenário
montanhoso produziu efeitos similares ao divino.
O impressionante Vale do Travessão. Foto: Duda Menegassi.
Carlos Drummond, o poeta, escreveu que “Minas não é palavra
montanhosa, é palavra abissal”. Se não poderia concordar mais com a
segunda afirmação, ela me faz questionar a primeira, porque os tais
espantos causados pelas paisagens de Minas Gerais são sim, bem
montanhosos. E na Serra do Cipó isso se escancara com horizontes
construídos de infinitos morros. Para todos os lados e nos mais variados
formatos e alturas, eles dão a verdadeira dimensão do que é uma
cordilheira. A Serra do Espinhaço se estende por mais de 1.000
quilômetros e vai do norte de Minas Gerais ao sul da Bahia, na Chapada
Diamantina, em uma linha praticamente reta, como uma espinha, o que
originou seu nome. A Serra do Cipó equivale a parte sul da cadeia, com
altitudes que variam entre 650 e 1.670 metros.
Calcula-se que o surgimento da Serra do Espinhaço começou há cerca de
2 bilhões de anos, quando a região ainda era um oceano, através do
choque entre placas tectônicas. No encontro das placas, houve o
soerguimento de uma por cima da outra. O resultado foi o surgimento de
uma crista rochosa onde todas as pedras se inclinam na mesma direção. É
visualmente impressionante ver como as rochas se projetam diagonalmente
com uma força como se, de fato, tivessem acabado de romper o ventre da
terra. Quem pensa que as pedras não se movem, não conhece o Espinhaço. A
peculiaridade pode funcionar até como bússola natural, sempre apontando
o Oeste.
Fechos de luz cortam as nuvens e trazem ares divinos ao dia nublado. Foto: Duda Menegassi.
Chegamos na Casa das Tábuas no final da tarde. O abrigo é,
literalmente, uma pequena casa construída rusticamente com tábuas de
madeira, porém seu fogão à lenha garante um ambiente acolhedor na noite
fria mineira. Sob os últimos raios de luz solar, todos rapidamente
montaram suas barracas nos arredores do abrigo, que funciona como ponto
de apoio dos brigadistas do parque. Durante a noite, quando uma neblina
espessa caiu, antecipando a chuva forte que viria na madrugada, mesmo as
cores das barracas mais vibrantes se perderam, camufladas pela bruma. A
primeira noite na Serra do Cipó, em meio à névoa, parecia um cenário
encantado de filme.
A Casa de Tábuas, abrigo do primeiro pernoite, envolta na névoa matinal. Foto: Duda Menegassi.
O segundo dia da travessia – por entre as nuvens
Pela manhã, a neblina persistia e agora se confundia com as fumaças
das nossas respirações. A temperatura fez mineiros e cariocas baterem
queixo lado a lado, sem distinção, e obrigou todos a deixarem o
acampamento devidamente agasalhados. A quilometragem do segundo dia de
travessia é de 12 quilômetros e, no caminho, alcançaremos o ponto mais
alto do
trekking: 1.614 metros de altitude.
Partimos em meio às brumas, com uma visibilidade baixa que às vezes
não permitia que enxergássemos nem 50 metros à frente. Estamos dentro da
nuvem e vez ou outra sentimos as gotículas de uma garoa exclusiva das
alturas. No caminho, enxergamos o suficiente para nos maravilharmos com
uma canela-de-ema gigante, uma das peculiaridades da Serra do Cipó, com
mais de 500 anos de vida. Para se ter uma ideia, o indivíduo mais velho
da planta encontrado no parque foi datado com aproximadamente 900 anos.
A neblina intensa escondia o entorno e, combinada com a vegetação
rasteira, provou-se um desafio de orientação. Tanto que o próprio guia
se confundiu e, quando vimos, não sabíamos por onde ir. Felizmente,
conseguimos recuperar o prumo certo. A experiência – ainda que curta –
de se perder, provou que ainda é preciso investir bastante em
sinalização e manejo na trilha. A profusão de caminhos devido à
vegetação baixa também colabora para que até montanhistas mais
experientes possam se perder por ali. Atualmente, a única sinalização
são algumas estacas com a parte superior pintada de amarelo. O parque
não obriga a contratação de guias para quem quiser fazer o
trekking, mas é recomendável (e prudente) a companhia de alguém que conheça os caminhos da unidade.
A travessia foi oficialmente inaugurada em outubro de 2015 e o
trabalho de sinalização e manejo ainda está em andamento, com apoio dos
voluntários e dos brigadistas - uma vez que a trilha também funciona
como via de acesso para combater incêndios no interior do parque.
Em meio à neblina e ao clima inóspito, a Serra do Cipó floresce. Foto: Duda Menegassi.
Diante da neblina e do frio, o clima parece inóspito, mas a Serra do
Cipó surpreende com flores e cores que brotam na paisagem como se ali
houvesse uma primavera particular. De acordo com Bruno, a melhor época
para conhecer o “jardim do Brasil”, como descreveu o próprio Burle Marx,
é no verão. Quando o capim-estrela, espécie de gramínea com flor em
formato estelar na ponta, transforma os campos em verdadeiras
constelações terrestres; e quando as sempre-vivas estão todas em flor.
Assim como as orquídeas, as bromélias e as canelas-de-ema, além de
outras pequenas flores das mais variadas cores e formatos que, juntas,
enfeitam o relevo acidentado das alturas. O parque já registrou,
inclusive, espécies micro endêmicas de flora, ou seja, que só acontecem
em um determinado e restrito lugar, como a
Coccoloba cereifera,
cuja área de ocorrência é inferior à 30 km². É um atrativo à parte da
travessia descobrir a riqueza dos campos rupestres e ver como, mesmo sob
condições extremas, num solo sob rochas de quartzito, raso e ácido, a
vegetação consegue florir.
Quando começávamos a descida final para alcançar o abrigo de
pernoite, por volta das 13h, o tempo abriu e revelou os horizontes
escondidos até então pela neblina. Foi como se o visual da serra nos
tomasse de supetão e, de repente, caísse a ficha de onde estávamos, para
garantir mais um “uau” antes de encerrar o dia. Os últimos dois
quilômetros com os horizontes descortinados em contornos de montanhas
foram um presente sob medida. Pouco depois de chegarmos nos Currais,
nosso ponto de pernoite, as nuvens novamente invadiram os céus e
nublaram a paisagem.
Os Currais são outro lugar de apoio aos brigadistas. Durante a época
seca, quando os incêndios são mais comuns e perigosos, eles fazem
plantão dentro do parque. Naquela noite de sábado, cinco deles estavam
na casa. Ao todo, a unidade conta com uma equipe de 36 brigadistas. A
estrutura do abrigo é simples: uma fossa séptica, um fogão à lenha e, o
luxo, a possibilidade de conseguir um banho morno com água esquentada
direto no balde. Dispensei a mordomia para me banhar no rio próximo ao
camping para renovar as energias e sentir na pele as águas límpidas – e
congelantes, confesso - que nascem no Cipó.
Os brigadistas de plantão nos Currais, um dos abrigos da travessia. Foto: Duda Menegassi.
O terceiro dia de caminhada
O terceiro e último dia de
trekking começou às 9h30. Faltam
apenas 11 quilômetros para concluirmos a travessia e, como um presente
de despedida da serra, o dia amanheceu aberto, com pedaços de céu azul. O
tempo limpo foi especialmente generoso quando estávamos em meio a uma
espécie de planície cercada de morros e, mais uma vez, a imensidão
mineira exibiu sua natureza abissal, como diria Drummond.
Diante dessa verdadeira paisagem cinematográfica, a equipe da Caravela Filmes, que acompanhou toda travessia, tirou o
drone
da mochila para tentar traduzir em imagens aéreas de alta resolução o
que transborda nos olhos de quem está lá, ao vivo. A gravação faz parte
de uma futura série sobre os parques nacionais – da qual já sou
audiência garantida.
As imensidões da Serra do Cipó. Foto: Duda Menegassi.
Depois de 5 km praticamente planos, uma leve subida nos coloca no
topo da Serra dos Alves. “Agora é só descida”, adianta o gestor. De
fato, sairemos dos 1.400 metros para menos de 800 metros de altitude no
nosso ponto de chegada. Próximo ao sexto quilômetro, uma placa sinaliza
os limites do parque. De agora em diante a travessia segue no território
da
Área de Proteção Ambiental (APA) Morro da Pedreira
que, com seus quase 100 mil hectares de extensão, envolve o parque
nacional, com 33 mil. Ambas unidades são federais e atuam de forma
integrada pela conservação na região.
Apesar de hoje o trecho estar tecnicamente fora do parque, a previsão
do gestor é de que a área seja futuramente anexada, com uma ampliação
da unidade. O novo território, de cerca de 1.600 hectares, viria a
partir de uma compensação ambiental da Vale, e abrangeria esta parte
final da travessia. De acordo com Flávio, “a previsão é de que até 2018
ocorra a conclusão da regularização fundiária e o repasse das terras
pela Vale à União”.
A trilha serpenteia morro abaixo até que, numa curva, o cenário se
expande em forma de cânion. Lá embaixo, corre o rio Boca da Mata e, em
cima, uma pedra forma um morrete que se posiciona como um mirante
estratégico, na beira do precipício. Do alto, é inevitável se
impressionar ainda mais com o visual de infinitudes da Serra do Cipó.
Mais adiante, com localização igualmente privilegiada, está uma casa
abandonada. No meio do cânion, entre as paredes rochosas, ela parece se
precipitar em direção ao horizonte. Atualmente desocupada, com a
ampliação ela pode se tornar um futuro abrigo para travessia.
Por cima do cânion do rio Boca da Mata, um visual de imensidões. Foto: Duda Menegassi.
Na medida em que descemos, o ambiente vai mudando e a vegetação
rasteira vai se transformando em floresta. São as influências da Mata
Atlântica, que predomina na parte leste do parque. Antes da chegada, um
último obstáculo, uma pinguela, uma ponte banguela, onde as tábuas de
madeira estão rusticamente presas por cabos de aço enferrujados pelo
tempo. Terminamos a travessia no começo da tarde, a tempo de um almoço
de comida caseira na comunidade de Serra dos Alves. Os 40 quilômetros
podem parecer muito comparado a outras trilhas de longa duração, mas é
só o começo para o Parque Nacional da Serra do Cipó. De acordo com o
gestor, “a nossa perspectiva é ampliar o percurso para cerca de 70
quilômetros, com diferentes opções de composição de trajeto”. Existe até
a opção de criar uma travessia circular, que alcançaria a quilometragem
85. Afinal de contas, a palavra de ordem por aqui é andar - e cada
passo vale a pena.
O caminho de 40 km percorrido nos três dias de travessia, com os pontos de pernoite. Em vermelho, os limites do parque.
Travessia Alto Palácio x Serra dos Alves
Onde: Parque Nacional da Serra do Cipó (MG)
Distância: 40 quilômetros
Pernoite? Sim. São dois pernoites, realizados em dois abrigos, Casa de Tábuas (km 17) e Currais (km 29).
Para realizar a travessia é necessário fazer o agendamento no ecobooking. É recomendado contratar um guia local. |
*Duda Menegassi é jornalista de
((o))eco e à convite do ICMBio irá acompanhar as dez travessias em
unidades de conservação que serão realizadas em comemoração aos dez anos
do órgão ambiental.
http://www.oeco.org.br/reportagens/uma-travessia-nas-alturas-da-serra-do-cipo/