Meio Ambiente & Desenvolvimento Humano

sábado, 14 de janeiro de 2017

A picada da mosca que deixa vítimas em sono profundo

Alterações de personalidade, confusão mental grave e má coordenação também podem acontecer

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Mosca tse-tse, conhecida como mosca do sono (Patrick Robert/Sygma/Getty Images)

Esqueça o que você conhece por picada de mosquito. Enquanto o inseto é capaz de inserir sua micro e fina língua diretamente no sangue da vítima, muitas vezes sem nem ser ao menos notado, existe uma espécie cuja boca possui minúsculas serrilhas capaz de romper a pele para sugar o sangue. Trata-se da mosca tsé-tsé.
Para piorar, várias espécies dessa mosca podem transmitir doenças. Uma das mais perigosas é causada por um parasita: a doença do sono ou tripanossomíase humana africana (THA), para dar o nome oficial. Sem tratamento, ela é normalmente fatal.
Como tantas doenças tropicais, a doença do sono tem sido muitas vezes negligenciada pelos pesquisadores farmacêuticos. No entanto, investigadores têm se esforçado há tempos para compreender como ela engana os mecanismos de defesa do nosso corpo. Algumas de suas descobertas, porém, agora podem ajudar a eliminar a enfermidade completamente.
Há dois parasitas unicelulares que causam o sono mortal: Trypanosoma brucei rhodesiense e T. b. gambiense. Esse último é  predominante e é responsável por até 95% dos casos, principalmente na África Ocidental. Ele leva vários anos para matar uma pessoa, enquanto o T. b. rhodesiense pode causar a morte em poucos meses. Existem ainda outras formas que infectam o gado.
Após a mordida inicial, os sintomas da doença do sono muitas vezes começam com febre, dores de cabeça e dores musculares. À medida que ela avança, os infectados ficam cada vez mais cansados – e é daí que a doença recebe seu nome. Alterações de personalidade, confusão mental grave e má coordenação também podem acontecer.
Embora a medicação ajude, alguns tratamentos são tóxicos e podem ser letais, especialmente se ministrados depois que o mal alcançou o cérebro.
Controle?
É interessante notar que a doença do sono não é tão mortal como antes. No início do século XX, várias centenas de milhares de pessoas eram infectadas por ano. Na década de 60, a doença foi considerada “sob controle” e registrou números muito baixos, tornando sua propagação mais difícil. Mas nos anos 1970 houve outra grande epidemia, que demorou vinte anos para ser controlada.
Desde então, programas melhores de rastreio e intervenções antecipadas têm reduzido o número de casos dramaticamente. Em 2009, foram contados menos de 10 000 deles pela primeira vez desde que os registros começaram, e em 2015 esse número caiu para menos de 3 000, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde. A OMS espera que a doença seja completamente eliminada até 2020.
Mas, enquanto o declínio parece positivo, pode haver muitos mais casos não registrados na zona rural da África. Para eliminar o problema completamente, as infecções têm de ser acompanhadas de perto. Uma série de novos estudos tem mostrado que o parasita é mais complicado do que se imaginava.
A doença do sono sempre foi considerada – e diagnosticada – como uma doença de sangue, pois o T. brucei pode ser facilmente detectado no sangue de suas vítimas. Num estudo publicado em setembro de 2016, porém, pesquisadores revelaram ter descoberto que o parasita também pode residir na pele e na gordura.
‘Corrida armamentista’Essa não é a única razão pela qual os parasitas podem iludir nosso sistema imunológico. Em 2014, Etienne Pays, da Universidade de Bruxelas, na Bélgica, descreveu a história da doença do sono como uma “corrida armamentista” entre os humanos e o parasita.
Nessa batalha, nossa principal arma é uma proteína chamada apolipoproteína L1, que é resistente a uma forma anterior de T. brucei. Essa proteína foi “eficiente em matar o parasita no sangue”, disse Pays. “Pelo que sabemos, ela só estava lá para matá-lo.” Infelizmente, ao longo do tempo, o parasita encontrou uma maneira de burlar a proteção da proteína.
Enquanto a apolipoproteína L1 ainda pode matar a variante que infecta o gado, não é mais eficaz contra as duas estirpes do T. brucei que infectam os seres humanos. Essas duas “conseguiram escapar”, disse Pays. Mas ele e sua equipe conseguiram ajustar a proteína em seu laboratório para torná-la resistente ao T. b. rhodesiense, a forma rara, mas mais letal.
O que eles não perceberam é que há pessoas na África que já têm um sistema de defesa semelhante. Graças a uma mutação na mesma proteína, elas têm imunidade natural contra o T. b. rhodesiense. Pays agora suspeita que algumas pessoas sejam resistentes a todas as formas do parasita.
Essa imunidade natural infelizmente tem um custo. Ninguém ainda sabe por que, mas ela tem sido associada a doenças renais em idade mais avançada.
O desafio é fazer uma variante sem efeitos colaterais. A equipe de Pays produziu outra proteína capaz de matar ambas as formas, mas, quando eles a testaram em camundongos, os animais morreram. O pesquisador ainda está aprimorando a proteína em seu laboratório, na esperança de que ela irá fornecer uma cura eficaz. “Nós criamos outra, que estamos testando atualmente”, disse.
As fasesSe Pays atingir seu objetivo, os médicos simplesmente precisarão injetar a proteína em uma pessoa infectada. Em seguida, ela vai matar o parasita e desaparecer. Isso é promissor, mas há um desafio adicional.
A razão pela qual a doença do sono é tão mortal é que ela pode entrar no cérebro. Instalada lá, causa sintomas mais graves, como confusão, alucinações e má coordenação. Uma vez no cérebro, ela se torna mais difícil de tratar e, portanto, mais fatal. Médicos pensam nisso como um segundo estágio da doença, sendo a primeira quando o parasita infecta o sangue.
Para atingir o cérebro, o parasita deve atravessar a barreira sangue-cérebro, que bloqueia a maior parte das doenças e toxinas. A questão-chave é como ele atravessa – ao que parece, estamos olhando para o lado errado do problema.
Um estudo publicado em outubro de 2016 propõe que a doença do sono tem três fases, e não duas, como se pensava anteriormente. A primeira é a picada da mosca tsé-tsé, após a qual o parasita infecta o sangue da pessoa. Na segunda etapa, que não foi identificada anteriormente, o parasita aparece no líquido cefalorraquidiano e em três membranas que envolvem o cérebro, conhecidas como meninges.
Na terceira fase, as fronteiras de proteção do cérebro quebram e uma “invasão em massa” de tripanossomas atravessa a barreira sangue-cérebro, atacando-o.
Michael Duszenko, da Universidade de Tubingen, na Alemanha, e seus colegas descobriram o segundo estágio em camundongos. Eles também encontraram uma razão para que a terceira fase leve meses e às vezes anos para ocorrer: acontece que o parasita se mantém no segundo estágio, ativamente atrasando o progresso da doença.
Para conseguir isso, ele libera um composto chamado prostaglandina D2, que faz duas coisas. Em primeiro lugar, induz o sono no paciente, tornando-o mais vulnerável à picada de uma mosca tsé-tsé. Em segundo lugar, faz com que algumas das células de parasitas iniciem um processo chamado apoptose, ou “morte celular”. Em outras palavras, o tripanossoma propositadamente destrói algumas das suas próprias células.
Matar suas próprias células pode soar como uma má ideia, mas fazê-lo “reduz a carga do anfitrião e aumenta a probabilidade de parasitas serem transmitidos para a mosca tsé-tsé”, diz Duszenko.
O conceito é manter o hospedeiro vivo, de modo que o parasita tenha mais tempo para infectar outras pessoas. Se a concentração de parasitas subir muito rapidamente, o anfitrião morreria antes de o parasita se espalhar. Essa descoberta pode ajudar a explicar por que algumas pessoas vivem com níveis crônicos da doença por anos. Livros didáticos devem agora ser reescritos em conformidade com essas pesquisas, diz Duszenko.
Adversário difícilApesar desses avanços, ainda há o problema de que o T. brucei é muito bom em se manter um passo à frente da defesa dos seus anfitriões. O parasita é particularmente hábil em “variação antigênica”: tem mais de 1 000 versões de uma proteína em sua superfície exterior, mas exibe apenas uma versão de cada vez, de modo que o sistema imunológico do hospedeiro só produz anticorpos contra a proteína que está à mostra.
Nesse meio-tempo, alguns dos parasitas mudam para outra versão, que não podem ser atacadas por esses anticorpos. Toda vez que o anfitrião produz anticorpos contra uma nova onda de parasitas, alguns tripanossomas mudam para uma nova camada. “A resposta imune está sempre tentando recuperar o atraso com os parasitas”, diz Martin Taylor, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.
Em parte por isso, não houve novas drogas durante décadas. Um dos medicamentos recomendados é a pentamidina, que trata a primeira fase do T. b. gambiense – ela foi desenvolvida em 1940. O melarsoprol, que trata a fase final, foi desenvolvido em 1949 – é tóxico e causa a morte em cerca de 5% dos casos.
Outra questão é que as empresas farmacêuticas não têm investido muito dinheiro em pesquisas sobre a doença do sono: ela é uma das chamadas doenças negligenciadas. “A razão pela qual elas são chamadas de doenças negligenciadas é porque elas foram negligenciadas”, diz Taylor. “Porque são doenças das pessoas mais pobres dos países em desenvolvimento, e, uma vez que leva milhões de dólares para desenvolver uma droga para o mercado, não há o incentivo econômico para criar novos medicamentos.”
Isso parece ter mudado um pouco nos últimos anos. Algumas empresas farmacêuticas até fizeram parcerias com organizações sem fins lucrativos que pressionam por novos remédios. MacLeod diz que há duas novas drogas “em vias de desenvolvimento”, que estão passando por testes. “Recentemente, tem havido um esforço para encontrar drogas para essas doenças negligenciadas”, afirma.
A doença do sono certamente continuará presente nos próximos anos. Mas, ao revelar mais segredos do parasita, um dia poderemos ser capazes de colocá-la para dormir de vez.
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VIDHA LINUS

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