Meio Ambiente & Desenvolvimento Humano

quarta-feira, 3 de maio de 2017

"O cerrado é a caixa d’água da América do Sul"

Seg , 17/04/2017 às 10:51 | Atualizado em: 17/04/2017 às 11:54

Tatiana Mendonça   ATARDE
  
                                                                 Sara Vitória / Divulgação
http://fw.atarde.uol.com.br/2017/04/750_201741711508586.jpg
Para Altair Sales, o cerrado baiano passou por uma devastação "nunca vista na história"

No final de março, um artigo publicado por pesquisadores brasileiros na revista Nature Ecology & Evolution trazia uma indicação alarmante: se o índice de desmatamento do cerrado se mantivesse como é hoje, em trinta anos o bioma poderia perder mais de mil espécies de plantas, maior extinção de vegetais da história. O antropólogo e arqueólogo baiano Altair Sales Barbosa, 68, profundo conhecedor da região, não se abalou muito com essa história, por uma razão igualmente trágica. Para ele, essa extinção, em boa medida, já ocorreu. Enquanto os pesquisadores que escreveram o artigo apontam que 20% da área inicialmente ocupada pelo bioma permanece intacta, Altair fala num número ainda menor, entre 2% e 5%. A devastação se alastrou pelo cerrado baiano, localizado no oeste do estado. “O que aconteceu ali é algo nunca visto na história da humanidade.  Não existe mais nada de intacto lá. Só lavoura de um lado e do outro”. A área integra a fronteira agrícola do Matopiba, que reúne os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, grande produtora de soja, milho e algodão.  Altair explica que, uma vez desmatado, o cerrado não se recupera “jamais”, por conta de suas características evolutivas. Com a perda da vegetação – que têm um sistema de raízes que funciona como uma “esponja”, sugando a água da chuva para o solo – há um impacto direto na alimentação das nascentes dos rios, que se espalham pela região. A previsão de Altair é que com menos água vários rios irão desaparecer de “maneira irreversível”, incluindo o São Francisco. “Se continuar da forma como está, é só uma questão de pouco tempo”.  Para quem pensa que o problema está distante, nas profundezas do Brasil, vale lembrar das cada vez mais constantes crises de abastecimento de água nas grandes metrópoles, situação que, para o pesquisador, será “eternamente crescente”. “Vamos ficar o tempo todo pedindo chuva para abastecer represas”.

No artigo publicado na Nature Ecology and Evolution, os autores apontam que é possível evitar a extinção recorde de espécies no cerrado a partir de uma maior produtividade das pastagens e a adoção de políticas públicas, como a moratória da soja, que já vigora na Amazônia. O senhor acredita que essas medidas são eficientes?

Não. Esses dados de que no cerrado ainda existem grandes quantidades de plantas... Isso é uma falácia. Alguns dos subsistemas do cerrado já foram totalmente extintos, como é o caso das campinas, dos chapadões, cuja vegetação foi retirada para plantação de grãos. Hoje temos no máximo entre 2% e 5% de área preservada no cerrado, pequenas manchas que ainda estão intactas, localizadas em algumas reservas indígenas e outras áreas no vale do Parnaíba [rio que divide os estados do Maranhão e do Piauí], onde será implantado agora o projeto do Matopiba. Isso irá levar praticamente à extinção do restinho de coisa que existe. O segundo ponto é que o cerrado é um tipo de ambiente que já chegou ao seu clímax evolutivo. Dentro da história recente da Terra, o cerrado é o ambiente mais antigo. Isso significa que, uma vez degradado, ele não se recupera jamais. É totalmente diferente da mata atlântica ou da mata amazônica. Você pode até reproduzir em viveiros algumas plantas arbóreas do cerrado – cerca de 150, 180 espécies, das 13 mil existentes. Mas, mesmo que você consiga replantá-las, elas não vão se desenvolver, porque não vão encontrar mais as condições ideais para o seu desenvolvimento. As plantas do cerrado são extremamente especializadas. Vou dar o exemplo do buriti. Ele é fácil de germinar em viveiro, mas precisa de um lugar de muita água para se desenvolver. E hoje nossas veredas estão secas. Além do mais, se você encontrar essa condição ideal, o desenvolvimento do buriti é muito lento. Ele vai atingir a idade adulta com 500 anos. E ainda tem outro complicador... Assim como o buriti, muitas plantas do cerrado são diócas, ou seja, você tem o macho e a fêmea. Então, você precisa dos dois para que haja o cruzamento e a produção de sementes.
A expansão do  Matopiba e a preservação do cerrado são incompatíveis? Não podem coexistir?
Não. Se houvesse desde o início da década de 1960 um estudo, um zoneamento agroecológico, e o agronegócio ocupasse áreas que não fossem estratégicas para a sobrevivência do cerrado, aí sim poderiam coexistir. Mas como não houve isso, e certamente não vai haver... Estive lá recentemente e vários rios desapareceram, secaram. O nosso agronegócio, apesar de produtivo – porque existe uma injeção de conhecimento para fazer com que as áreas de cerrado se tornem altamente produtivas, jogando grande quantidade de calcário, adubo, e fazendo as correções necessárias no solo, inseticidas para matar as pragas, que também matam os insetos nativos, polinizadores –, esse modelo de agronegócio é extremamente predatório e não leva em consideração a história evolutiva do cerrado. O principal elemento do cerrado é o seu extrato de vegetação inferior. É isso que sustenta a água do cerrado. Essas plantas têm um sistema radicular extremamente complexo, que funciona como uma esponja que suga a água da chuva e que deposita essa água no solo subterrâneo, alimentando as nascentes que se formam pela região. Uma vez que você retira isso, você modificou totalmente  o solo do cerrado.

O desmatamento no cerrado ocorre num ritmo cerca de 2,5 maior do que na Amazônia, mas é algo que não ganha a mesma repercussão. Por que há essa diferenciação no tratamento dos dois biomas?

Isso acontece pela falta de conhecimento que impera em todo o sistema educacional brasileiro. Nós não conhecemos nossas matrizes ambientais. No caso da Amazônia, a população é influenciada pela exuberância da floresta. No entanto, a floresta amazônica, tal qual a conhecemos, é um tipo de ambiente ainda em evolução. Chegou a esse estágio de deslumbramento há três mil anos. A mata atlântica tem sete mil anos. Já o cerrado atingiu o seu apogeu por volta de 45 milhões de anos. A diferença de idade é muito grande. Quando a gente fala que o cerrado é um sistema biogeográfico, composto por diversos subsistemas, isso engloba não só a vegetação, mas os animais, a água, os rios, a população humana e outros elementos, como a geologia, a geomorfologia, o clima.
O desmatamento no cerrado baiano ocorre no mesmo ritmo de outros estados? Quais são as particularidades  encontradas aqui? 
O cerrado baiano desempenhava uma função ecológica extremamente importante para a vida do rio São Francisco. Na época do governo militar, principalmente no final da década de 1960, houve um grande incentivo à distribuição de terras para pessoas absenteístas, que não moravam no local. Grandes empresários, inclusive internacionais, ganhavam milhares de hectares de terra para tentar investir nessa região. Só que, na época, a área foi simplesmente desmatada. Um ou outro empreendimento iniciou-se naquele momento. O governo deu a terra, a infraestrutura básica para a retirada da vegetação nativa, e essa infraestrutura eram tratores possantes, amarrados a correntões. A vegetação foi varrida do local para plantação de plantas exóticas que não vingaram, como o eucalipto, o pinus. Só depois vieram os grãos, quando se criou tecnologia para que a área se tornasse produtiva. Essas áreas desmatadas eram áreas de recarca dos aquíferos. O cerrado é a caixa d’água da América do Sul. Todas as águas que saem para todas as grandes bacias hidrográficas da América do Sul estão retidas na região central do Brasil, incluindo o oeste da Bahia. Então o que aconteceu no oeste da Bahia é algo de causar espanto. É algo nunca visto na história da humanidade.  Se você pegar uma imagem aérea dessa região, vai ver que não existe mais nada de intacto lá. Só lavoura de um lado e do outro. A devastação foi tanta que vários tributários menores dos rios maiores desapareceram de maneira irreversível. E quanto aos rios que existem atualmente, é só uma questão de tempo. Eles irão desaparecer.

O rio São Francisco também?

Também. As nascentes de alguns rios importantes, como o rio Grande, que alimenta a cidade de Barreiras e que alimenta o São Francisco, estão distantes até 200 km de suas nascentes originais. Você pega o rio do Meio, o rio Correntina, o rio Arrojado, o rio Carinhanha, todos foram mutilados de tal forma que suas nascentes avançaram em direção ao interior. E esses rios são responsáveis pela perenização e pela própria vida do São Francisco. A vida desses rios pede socorro. Se continuar da forma como está, é só uma questão de pouco tempo e a maioria desses rios vai desaparecer. Com esses rios desaparecendo, consequentemente o São Francisco vai diminuir em muito a sua vazão.

E como a transposição do São Francisco irá influenciar neste quadro?

A transposição é só mais um complicador. Faço uma represa imensa, como Sobradinho, retenho a água do rio, e depois vou bombear essas águas para canais, tanto para o norte quanto para o leste, e subdividir esse canal em vários outros canais, que vão conduzir a água. Só que no momento que essas bombas começam a funcionar, elas vão alterar a mecânica do rio. O rio vai correr mais rápido. E correndo mais rápido, ele vai sugar os seus afluentes de maneira mais rápida. Consequência: esses afluentes que correm sobre um arenito, o arenito do [aquífero] Urucuia, vão levar grande quantidade de sedimento para o rio, o que vai provocar vários bancos de areia. No futuro, a água que fica ali empossada vai evaporar quando houver uma estiagem um pouco mais prolongada. O rio, ao correr por áreas desnudas, sem vegetação, perde uma grande quantidade de água. Em todos os rios alimentadores do São Francisco esse fenômeno já está acontecendo, e no rio São Francisco também. Os aquíferos que alimentam esses rios também não estão sendo reabastecidos como eram até a década de 1960. Os aquíferos já chegaram ao nível de base, principalmente o Urucuia. Você imagine um copo cheio de água, com muitos furos. Se esse copo estiver cheio, a água vai sair por todos os furos. Mas se ele for esvaziando, que é o que acontece no aquífero do Urucuia, a água vai sair só nos furos inferiores. Consequência, a água que ficava lá em cima, na nascente lá de cima, vai desaparecer. A outra desaparece imediatamente, a outra também... É isso que está acontecendo com os afluentes da margem esquerda do São Francisco, que são os responsáveis por sua perenização. Esse projeto de revitalização que o governo fala é só um discurso vazio usado para iludir o povo.

E existe algo que a população e o poder público possam fazer diante dessa situação tão alarmante?

Tem algumas pistas. O primeiro caminho é deixar intacto o que ainda existe de intacto no cerrado, para que nós possamos entender essa matriz ambiental de maneira global. Outro caminho é o investimento em pesquisa científica. Nossas universidades têm que  investir em pesquisa, para produzir conhecimento que possa solucionar os problemas com os quais estamos vivendo atualmente e que só vão se agravar daqui para a frente. As universidades  têm que deixar de ser supermercados que distribuem enlatados para produzirem a própria comida. O problema de falta de água nas cidades, por exemplo, é um problema eternamente crescente. Como os rios que alimentavam os reservatórios dessas cidades foram perdendo água, não alimentam mais esses mananciais como faziam até pouco tempo atrás. Consequência: demanda crescente da população e alimentação menor, o problema surgiu da forma como nós presenciamos no momento. E basta uma estiagem mais prolongada para provocar esse tipo de fenômeno, porque os nossos rios dependem agora da chuva, e não dependem mais, como dependiam, dos lençóis freáticos que os abasteciam, porque esses lençóis já chegaram no nível de base. Então você fica o tempo todo pedindo chuva para abastecer represa. Água de enxurrada que vai abastecer represa, e não mais os rios perenes. 

Disponível: 
http://atarde.uol.com.br/muito/noticias/1854286-o-cerrado-e-a-caixa-dagua-da-america-do-sul
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VIDHA LINUS

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