Segunda-feira, 19/06/2017, às 20:40,
Não conheço Negra Linda pessoalmente. Fui
apresentada a ela pela publicação "Rádios Comunitárias em Tempos
Digitais", editada pela Amarc (Associação Mundial de Rádios
Comunitárias), que ganhei de um amigo com a recomendação: "Leia, você
vai gostar". O nome verdadeiro de Negra Linda é Rejane Soares, ela mora
no Amapá, é empreendedora, designer, está sempre em contato com povos
que vivem nas florestas etem paixão pelo rádio: "É difícil sair do rádio
depois que tu é picado pelo bichinho do rádio".
"O
rádio é instantâneo, entra em lugares onde a internet não entra, onde
não tem Wi-Fi, onde não tem WhatsApp. Às vezes, você vai na casa de
farinha dentro de uma comunidade e o rádio está lá, acompanha tudo que
acontece na cidade, no mundo. Apesar de o mundo estar muito moderno,
para gente que vive aqui na Amazônia, o rádio é primordial para
comunicação, para troca de conhecimento e para o fortalecimento da
identidade", diz Negra Linda, em entrevista concedida ao repórter
Dilliany Justino, da agência informativa Pulsar Brasil.
Pronto,
eis-me afinada com os pensamentos de Negra Linda, embora não a conheça.
O texto da publicação escrita nos ligou, um tipo de comunicação tão
antiga que nele nem pensamos mais. O que hoje se debate e se tenta
entender, decifrar, para aproveitar da melhor maneira possível, é essa
vastíssima rede de informações via digital.
O
livro da Amarc Brasil, recentemente publicado com apoio da Ford
Foundation, põe luz também sobre as rádios, um intrincado e antigo
modelo de comunicação que se utiliza do espectro eletromagnético para
chegar às pessoas. São artigos que buscam analisar os “impactos que a
comunicação em rede tem para as rádios comunitárias e livres, as
respostas que elas já têm dado e onde elas têm sido ausentes frente às
transformações sociais, políticas e tecnológicas em curso”.
No
mundo da comunicação, tudo pode ter começado com a batida dos tambores,
considerada a primeira internet do mundo. Mas vamos avançar um pouco
mais no tempo e repetir aqui as informações de Adriano Belisário, um dos
articulistas do livro, jornalista que pesquisa tecnologias livres e
comunicação há mais de uma década. Segundo ele, os primeiros
experimentos com transmissões por rádio aqui no Brasil foram feitos por
Padre Landell de Moura em 1893. Consideraram-no feiticeiro, louco,
quebraram seus equipamentos, o transferiram de paróquia, mas nada disso
fez o pároco desistir.
Chegamos
ao modelo de hoje, que não agrada a todos porque muitas rádios replicam
um modelo hegemônico, não respeitam as singularidades de um país tão
grande e diverso. As rádios comunitárias podem ocupar um espaço da
singularidade. Talvez o ideal seja mesmo que cada comunidade tome para
si uma parte do espectro eletromagnético e aproveite ao máximo esse
espaço para comunicar.
Um
caso pioneiro no México deu status legal, depois de muita luta, à
experiência de acesso à emissão e recepção de som e mensagem por
aparelhos celulares simples por parte de comunidades rurais. Ao todo,
três mil usuários estão sendo beneficiados, mostrando que a telefonia
comunitária é um caminho possível, informa outro artigo da publicação.
A
história da comunicação no Brasil passa por desafios, apontados por
Thiago Novaes, pesquisador em telecomunicações. E foi na leitura desse
artigo que mais me surpreendi com a quantidade de informações que eu não
sabia a respeito dos marcos jurídicos da comunicação no país. É um
imbróglio que merece ser destrinchado muito devagar porque há vários
meandros. O tom dissonante é que, muitas das vezes, as rádios
comunitárias precisam se explicar demais para serem instaladas, já que
são confundidas com rádios clandestinas.
A
publicação da Amarc faz perguntas, dá muitas respostas, busca se
distanciar do pensamento polarizado e, talvez por isso, tem muitos
formatos. Reproduz encontros presenciais para
debater o tema, dá espaço para especialistas escreverem sobre leis e
informa bastante. Através do artigo escrito por Rafael Diniz,
especialista em informática, o leitor fica sabendo, por exemplo, que o
rádio é o último meio eletrônico de massa ainda operando em modo
analógico. Foi em meados de 2000 que começou, por aqui, a história do
rádio digital. Muita gente não quer ouvir falar a respeito, não quer
misturar alhos e bugalhos, não larga mão do afeto que tem pelo pequeno aparelho que traz perto do ouvido.
Misturar
tanta modernidade com uma história quase ancestral pode ser o único
caminho. Mas aqui vale a reflexão: vamos, finalmente, perceber que a
internet é democrática até certo ponto, já que tem que ser paga e que
exige computador, um aparelho ainda caro? A publicação segue pelo
segmento das dúvidas, o que é sempre melhor do que o das muitas
certezas. Tem até mesmo uma história em quadrinhos, formato usado para
ressaltar o papel hegemônico das rádios comerciais. Reclamar contra isso
faria um bem enorme aos ouvidos, mas quem há de ouvir, se as rádios têm
apenas uma via?
"Imagine
uma rádio onde você, como ouvinte, pudesse atuar o tempo todo. Assim
era o rádio no início, um aparato com duas caras, sempre transmissor e
receptor ao mesmo tempo. Logo chegaram os militares, empresários e
governos para implementar outro modelo", conta a história em quadrinhos.
Para
ouvir e ser ouvido seria preciso um dispositivo que não fosse o
celular, já que isso significaria falar com uma pessoa só e teria que
ser pago.
"Isso
deveria ser organizado pelas comunidades mesmo. Já existem algumas
experiências nesse sentido. No Sul do México tem uma dúzia de
comunidades indígenas que organizam as suas próprias redes locais de
telefonia celular. E, na Amazônia, ouvi falar de uma reserva ecológica
onde usam transmissores de ondas curtas para se comunicar em rede", diz o
texto dos quadrinhos.
Voltemos,
então, para Negra Linda, que fala de um lugar bem conhecido e
exemplifica sua fala com experiência própria. É afrodescendente e
defende as rádios comunitárias como facilitadoras também de acesso à
cultura dos quilombolas. Convive com pessoas que não moram no Sul,
Sudeste e ressalta: "O povo esquece que tem Norte, Nordeste,
principalmente a Amazônia". Em localidades que não fazem parte do centro
nervoso do país, a comunicação popular tem um peso, e muito grande, na
vida das pessoas:
"Ela
vai para o dia a dia das pessoas, consegue mostrar a realidade. Tem
coisas que a gente não vê na televisão e escuta nas rádios comunitárias,
tem músicas que a gentenão ouve na grande mídia e escuta nas rádios
comunitárias, assuntos que não vê serem debatidos na grande mídia. E
essa liberdade que a gente tem na comunicação popular e comunitária, de
falar de assuntos que são nossos e do nosso jeito, é muito importante",
diz ela.
É muito pano para manga. Mas a importância desse tema exige uma
participação efetiva de todo mundo. Se me permitem uma comparação
exagerada, é quase tão importante selecionar o que comemos quanto aquilo
que ouvimos, assistimos, lemos. E sim, a via precisa ser de mão dupla. A
publicação da Amarc tem informações suficientes para nutrir um bom
início de conversa. Daqui mais ou menos um mês será disponibilizada no site da organização.
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