Meio Ambiente & Desenvolvimento Humano

quarta-feira, 21 de junho de 2017

O lugar das rádios comunitárias no mundo digital

Segunda-feira, 19/06/2017, às 20:40,
Não conheço Negra Linda pessoalmente. Fui apresentada a ela pela publicação "Rádios Comunitárias em Tempos Digitais", editada pela Amarc (Associação Mundial de Rádios Comunitárias), que ganhei de um amigo com a recomendação: "Leia, você vai gostar". O nome verdadeiro de Negra Linda é Rejane Soares, ela mora no Amapá, é empreendedora, designer, está sempre em contato com povos que vivem nas florestas etem paixão pelo rádio: "É difícil sair do rádio depois que tu é picado pelo bichinho do rádio".

"O rádio é instantâneo, entra em lugares onde a internet não entra, onde não tem Wi-Fi, onde não tem WhatsApp. Às vezes, você vai na casa de farinha dentro de uma comunidade e o rádio está lá, acompanha tudo que acontece na cidade, no mundo. Apesar de o mundo estar muito moderno, para gente que vive aqui na Amazônia, o rádio é primordial para comunicação, para troca de conhecimento e para o fortalecimento da identidade", diz Negra Linda, em entrevista concedida ao repórter Dilliany Justino, da agência informativa Pulsar Brasil.

Pronto, eis-me afinada com os pensamentos de Negra Linda, embora não a conheça. O texto da publicação escrita nos ligou, um tipo de comunicação tão antiga que nele nem pensamos mais. O que hoje se debate e se tenta entender, decifrar, para aproveitar da melhor maneira possível, é essa vastíssima rede de informações via digital.

O livro da Amarc Brasil, recentemente publicado com apoio da Ford Foundation, põe luz também sobre as rádios, um intrincado e antigo modelo de comunicação que se utiliza do espectro eletromagnético para chegar às pessoas. São artigos que buscam analisar os “impactos que a comunicação em rede tem para as rádios comunitárias e livres, as respostas que elas já têm dado e onde elas têm sido ausentes frente às transformações sociais, políticas e tecnológicas em curso”.

No mundo da comunicação, tudo pode ter começado com a batida dos tambores, considerada a primeira internet do mundo. Mas vamos avançar um pouco mais no tempo e repetir aqui as informações de Adriano Belisário, um dos articulistas do livro, jornalista que pesquisa tecnologias livres e comunicação há mais de uma década. Segundo ele, os primeiros experimentos com transmissões por rádio aqui no Brasil foram feitos por Padre Landell de Moura em 1893. Consideraram-no feiticeiro, louco, quebraram seus equipamentos, o transferiram de paróquia, mas nada disso fez o pároco desistir.

Chegamos ao modelo de hoje, que não agrada a todos porque muitas rádios replicam um modelo hegemônico, não respeitam as singularidades de um país tão grande e diverso. As rádios comunitárias podem ocupar um espaço da singularidade. Talvez o ideal seja mesmo que cada comunidade tome para si uma parte do espectro eletromagnético e aproveite ao máximo esse espaço para comunicar.

Um caso pioneiro no México deu status legal, depois de muita luta, à experiência de acesso à emissão e recepção de som e mensagem por aparelhos celulares simples por parte de comunidades rurais. Ao todo, três mil usuários estão sendo beneficiados, mostrando que a telefonia comunitária é um caminho possível, informa outro artigo da publicação.

A história da comunicação no Brasil passa por desafios, apontados por Thiago Novaes, pesquisador em telecomunicações. E foi na leitura desse artigo que mais me surpreendi com a quantidade de informações que eu não sabia a respeito dos marcos jurídicos da comunicação no país. É um imbróglio que merece ser destrinchado muito devagar porque há vários meandros. O tom dissonante é que, muitas das vezes, as rádios comunitárias precisam se explicar demais para serem instaladas, já que são confundidas com rádios clandestinas.

A publicação da Amarc faz perguntas, dá muitas respostas, busca se distanciar do pensamento polarizado e, talvez por isso, tem muitos formatos. Reproduz encontros presenciais  para debater o tema, dá espaço para especialistas escreverem sobre leis e informa bastante. Através do artigo escrito por Rafael Diniz, especialista em informática, o leitor fica sabendo, por exemplo, que o rádio é o último meio eletrônico de massa ainda operando em modo analógico. Foi em meados de 2000 que começou, por aqui, a história do rádio digital. Muita gente não quer ouvir falar a respeito, não quer misturar alhos e bugalhos, não  larga mão do afeto que tem pelo pequeno aparelho que traz perto do ouvido.

Misturar tanta modernidade com uma história quase ancestral pode ser o único caminho. Mas aqui vale a reflexão: vamos, finalmente, perceber que a internet é democrática até certo ponto, já que tem que ser paga e que exige computador, um aparelho ainda caro? A publicação segue pelo segmento das dúvidas, o que é sempre melhor do que o das muitas certezas. Tem até mesmo uma história em quadrinhos, formato usado para ressaltar o papel hegemônico das rádios comerciais. Reclamar contra isso faria um bem enorme aos ouvidos, mas quem há de ouvir, se as rádios têm apenas uma via?

"Imagine uma rádio onde você, como ouvinte, pudesse atuar o tempo todo. Assim era o rádio no início, um aparato com duas caras, sempre transmissor e receptor ao mesmo tempo. Logo chegaram os militares, empresários e governos para implementar outro modelo", conta a história em quadrinhos.

Para ouvir e ser ouvido seria preciso um dispositivo que não fosse o celular, já que isso significaria falar com uma pessoa só e teria que ser pago.

"Isso deveria ser organizado pelas comunidades mesmo. Já existem algumas experiências nesse sentido. No Sul do México tem uma dúzia de comunidades indígenas que organizam as suas próprias redes locais de telefonia celular. E, na Amazônia, ouvi falar de uma reserva ecológica onde usam transmissores de ondas curtas para se comunicar em rede", diz o texto dos quadrinhos.

Voltemos, então, para Negra Linda, que fala de um lugar bem conhecido e exemplifica sua fala com experiência própria. É afrodescendente e defende as rádios comunitárias como facilitadoras também de acesso à cultura dos quilombolas. Convive com pessoas que não moram no Sul, Sudeste e ressalta: "O povo esquece que tem Norte, Nordeste, principalmente a Amazônia". Em localidades que não fazem parte do centro nervoso do país, a comunicação popular tem um peso, e muito grande, na vida das pessoas:

"Ela vai para o dia a dia das pessoas, consegue mostrar a realidade. Tem coisas que a gente não vê na televisão e escuta nas rádios comunitárias, tem músicas que a gentenão ouve na grande mídia e escuta nas rádios comunitárias, assuntos que não vê serem debatidos na grande mídia. E essa liberdade que a gente tem na comunicação popular e comunitária, de falar de assuntos que são nossos e do nosso jeito, é muito importante", diz ela.

É muito pano para manga. Mas a importância desse tema exige  uma participação efetiva de todo mundo. Se me permitem uma comparação exagerada, é quase tão importante selecionar o que comemos quanto aquilo que ouvimos, assistimos, lemos. E sim, a via precisa ser de mão dupla. A publicação da Amarc tem informações suficientes para nutrir um bom início de conversa. Daqui mais ou menos um mês será disponibilizada no site da organização.

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