Setor responde com novos produtos à rejeição dos consumidores
20 AGO 2017 - 22:52 BRT
Ele é um dos primeiros motores do comércio global e origem
de um sangrento legado de exploração. Durante décadas apreciado e
vilipendiado em partes iguais, seu caráter viciante preocupa as
autoridades de saúde pública
por seus efeitos na qualidade e na expectativa de vida da população.
Uma indústria gigantesca edificada sobre um produto cada vez mais
questionado pelos consumidores e os Governos por seus efeitos à saúde.
Poderíamos estar falando do tabaco,
mas não. Os especialistas avisam que o açúcar, uma indústria que em
2015 realizou exportações no valor de 20 bilhões de euros (74 bilhões de
reais), segue o mesmo caminho.
“O açúcar
é o tabaco do século XXI”, afirma Henk Grootveld, chefe de tendências
de investimento do Robeco e gestor de contas. “A situação da indústria
de alimentos e bebidas açucaradas é comparável à indústria tabagista no
ano 2000, na medida que os consumidores se tornam mais e mais
conscientes dos efeitos de seu excesso na saúde”. “O distanciamento dos
consumidores já é uma tendência global”, diz Nick Fereday, analista do
Rabobank. “É algo muito sério para indústria e não se pode desejar que
desapareça ou menosprezá-lo como uma moda passageira”.
Porque
nosso corpo precisa de um açúcar, mas não da sacarose (o nome
científico do açúcar refinado), mas da glicose. “É um dos combustíveis
fundamentais ao nosso organismo. Nossos músculos, nosso cérebro e outros
órgãos precisam de glicose para funcionar”, afirma um estudo do banco
de investimentos Robeco sobre o setor açucareiro publicado recentemente.
“Comer alimentos que contêm muito açúcar e colocá-lo na comida é como
lançar combustível ao fogo. Mas nosso corpo, graças a todas as bactérias
em nosso aparelho digestivo, está mais do que equipado para extrair
glicose de quase tudo o que comemos”. E dispara: “Está claro que, hoje,
os legisladores não estão preparados para ver o açúcar como um
ingrediente viciante e tóxico, como o álcool pode ser. Talvez o grito de
alerta dos políticos ocorra quando chegar a conta da epidemia de obesidade”.
Porque é uma epidemia, declarada como tal pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
em 2003. Em 2014, 1,9 bilhão de adultos tinham sobrepeso; 600 milhões
estavam obesos. Desde 1980, a porcentagem da população mundial com a
doença duplicou.
Um relatório da Morgan Stanley de março de 2015 chamado O Amargo Retrogosto do Açúcar alerta sobre as consequências econômicas da epidemia e afirma que, se medidas não forem tomadas, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
(OCDE) perderão entre 15% e 20% de sua produtividade até 2035. “Os
países que enfrentam as maiores perdas econômicas são aqueles onde a
predominância de doenças relacionadas à obesidade e o consumo de açúcar
já é alta”, diz o relatório, que coloca o Chile e o México entre os
países em maior risco.
“Nossas simulações mostram que uma força de
trabalho reduzida e menos produtiva, seja por mortes prematuras,
inatividade forçada e pior rendimento no trabalho, pode afetar de
maneira significativa o crescimento econômico, particularmente em
setores intensivos em mão de obra como o dos serviços”, diz o documento.
“Nosso modelo também sugere que pequenas mudanças na dieta podem trazer
benefícios significativos a longo prazo; o progresso sustentável,
entretanto, só será obtido por uma melhor compreensão por parte da
população dos dois lados do desequilíbrio calórico: consumo e gasto”.
A indústria se defende
A indústria, por sua vez, continua mantendo a
mesma posição que tem há décadas. “O problema não é o açúcar, são os
excessos”, afirma Rafael Urrialde, chefe de Saúde da Coca-Cola
Espanha. “O açúcar é um alimento como outro qualquer e inúmeros
alimentos o contêm. Se o consumo não é equilibrado, pode fazer muito
mal”.
Desde os anos sessenta, os estudos científicos
insistiram na redução do consumo de gorduras para se evitar problemas de
saúde. Mas isso mudou. “A tradição britânica de comer ovos no café da
manhã não é uma ideia tão ruim afinal de contas”, diz o relatório do
Robeco. “Enche o estômago, diminui o apetite por mais tempo e aumenta
nossa glicose no sangue a um prazo mais longo”.
O verdadeiro problema do açúcar na dieta não vem
em colheradas. Aproximadamente 80% do açúcar consumido nos mercados
desenvolvidos é destinado a diferentes alimentos industrializados, não
só por sua capacidade de melhorar o sabor da comida, mas porque é um
conservante que aumenta a quantidade de tempo que um produto pode ficar
nas prateleiras.
A pressão dos consumidores está obrigando as
empresas a buscarem alternativas. “Tirando os exageros dos que colocam
as mãos na cabeça, o que temos agora é talvez um público mais maduro”,
reconhece um especialista ligado à indústria açucareira. “Veremos uma
demanda muito forte por produtos orgânicos e inovadores”, diz Grootveld.
Em alguns casos, essas soluções são tecnológicas. A
startup israelense DouxMatox, fundada em 2014, desenvolveu uma forma de
recristalizar o açúcar de forma que tenha o mesmo efeito adoçante
utilizando uma quantidade menor, e promete colocá-la à venda na segunda
metade de 2018. Em novembro, a Nestlé anunciou o desenvolvimento de um
produto semelhante.
Mas, a curto prazo, a alternativa é reduzir as
quantidades de açúcar, seja incorporando menos aos alimentos, seja
reduzindo as porções e, principalmente, diversificando os catálogos para
incorporar elementos menos doces e sem o edulcorante. “Eu acho que as
grandes empresas prestaram muita atenção na reação das empresas
tabagistas”, afirma Grootveld. “Mudaram para outros adoçantes. É algo
parecido ao que ocorreu nos anos oitenta quando as pessoas reagiram em
relação à gordura”.
Pelo menos publicamente, os esforços existem. “É
óbvio que o açúcar é um ingrediente importante na composição de nossos
produtos”, afirma um comunicado da Associação Espanhola do Doce. “Mas
não é o único e nem o mais importante de acordo com a categoria de
produtos examinada”. A própria Nestlé
adotou em 2007 uma política de redução de açúcar que, segundo a
empresa, permitiu a economia de 36.000 toneladas do produto desde então.
Mas o setor com mais interesse em se reorientar é o
das bebidas açucaradas, especialmente depois de em 2016 a OMS pedir
publicamente que fossem taxadas com um imposto. “Os Governos (...) podem
reduzir o sofrimento e salvar vidas”, afirmou à época Douglas Bettcher,
diretor do órgão para doenças não contagiosas. Vários países, dentre os
quais o México e Portugal, decidiram aplicar uma taxa. Na Catalunha,
desde maio existe um imposto de 8 a 12 centavos de euro por cada 100
mililitros.
Tudo isso sob os protestos da indústria, que
menciona suas próprias medidas tomadas. “Há anos reduzimos o açúcar em
todos os nossos produtos”, diz Urrialde. “O conteúdo caiu em 38%, e em
alguns casos chega a ser de 80% do total. Nossa ideia é reduzi-lo à
metade; em alguns produtos não é possível oferecer uma alternativa, em
outros é possível perder mais de 60%. 41% de nossas vendas já são de
produtos sem açúcar e com açúcar reduzido; em alguns anos, serão a
metade”. “Um dos nossos objetivos para 2025 é fazer com que dois terços
de nossa gama global de bebidas tenham 100 calorias ou menos açúcares
acrescentados por cada lata de um terço de litro”, afirma um porta-voz
da Pepsico.
Reeducação
Nos Estados Unidos,
os consumidores tendem a migrar das bebidas gaseificadas aos sucos de
frutas e ao chá gelado, mas o relatório da Robeco alerta: “Se isso
ocorreu pela consciência dos consumidores com relação ao açúcar,
provavelmente seja necessária uma mudança na educação, pois os sucos e o
chá gelado podem conter tanto açúcar quanto um refrigerante normal.”
As tendências estão mudando, mas é difícil
quantificar seu impacto na indústria porque não se sabe realmente quanto
açúcar é ingerido. Como explica o relatório Sweetness and Lite,
publicado no início do mês pelo banco holandês Rabobank, “não há ninguém
que meça realmente o consumo de açúcar. O consumo é o que fica quando
se aplicam ao balanço global outros elementos mais fáceis de medir, como
a produção, as exportações, as importações e os estoques. De fato, o
termo ‘desaparecimento’, utilizado por alguns analistas, é o mais
preciso”.
A previsão é que a produção mundial de açúcar para
as colheitas de 2017-2018 seja de cerca de 180 milhões de toneladas, um
recorde histórico, segundo o Ministério da Agricultura dos EUA. Um
potente motor dessa marca foi uma mudança radical na política agrícola
da União Europeia: pela primeira vez, a produção açucareira do bloco
(majoritariamente de beterraba) não está sujeita a nenhuma restrição ou
cota, o que faz com que as exportações europeias de açúcar possam
aumentar de 1,5 milhão de toneladas para mais de 2 milhões. O objetivo
da supressão de cotas, segundo a Comissão Europeia, é conseguir “um
setor mais competitivo” dentro de uma “política agrícola comum mais
orientada às necessidades do mercado”.
Mas o mercado, neste momento, não precisa de mais
açúcar. No início da década, os preços caíram por causa do excesso na
oferta: o chamado contrato número 11 , a referência do mercado de
futuros, passou de 35 centavos de dólar a libra (454 gramas) em 2011
para pouco mais de 10 em 2015. Um breve aumento em 2016 deu esperança
aos mercados, mas eles voltaram a cair, girando em torno de 13 centavos
por libra.
Incerteza
Isso tem a ver com a mudança dos perfis de
demanda? “É difícil encontrar dados, mas parece que o consumo de açúcar
chegou ao máximo nos mercados ocidentais”, afirma a Robeco. “Na América
do Norte, caiu sete quilos entre 2001 e 2011.” Questionadas sobre a
potencial evolução, fontes do setor afirmam: “Não está claro se a
demanda cairá. Inclusive pode ser que haja um pouco de escassez se os
preços do petróleo continuarem em alta.” Os 38 milhões de toneladas de
açúcar armazenados em todo o planeta também são um fator que ajuda a
manter os preços baixos.
A chave do otimismo do setor está nos países
emergentes, em especial na Ásia: culturas onde o açúcar nunca foi uma
parte importante do consumo diária até agora. “Ao que parece, a dieta
ocidental continua sendo uma aspiração para as novas classes médias nos
mercados emergentes”, diz o Morgan Stanley. “As diferenças no consumo
por pessoa entre o mundo desenvolvido e o emergente continuarão
diminuindo, sem chegar a convergir.”
De fato, todas as regiões do mundo, com exceção da
Ásia Oriental e da África Ocidental, superam a recomendação da OMS de
que os açúcares adicionados não representem mais de 10% das calorias
diárias consumidas. Ainda assim, segundo um estudo da OCDE sobre as
consequências no mercado da queda da demanda açucareira, se esse limite
fosse aplicado durante cinco anos, a demanda global cairia 12% e os
preços, 25%. Esse mesmo documento afirma que países como o Brasil e os
EUA seriam os que mais teriam de reduzir a produção. Por outro lado, o
relatório informa que isso não afetaria o equilíbrio dos demais produtos
agroalimentares. “Em alguns países, os produtos finais seriam
substituídos por outros mais rentáveis, como o bioetanol no Brasil, ou
por outros cultivos, como as oleaginosas.”
Por isso, os analistas consideram que, aconteça o
que acontecer, por enquanto o consumo de açúcar não vai diminuir. “É
improvável que estejamos falando de uma tendência de queda no longo
prazo. O mercado continuará crescendo, mas devagar do que antes, mas
crescendo de todo jeito”, afirma o relatório do Rabobank.
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