A declaração é do coordenador da Rede Waterlat-Gobacit, José Esteban Castro, sobre a crise da água.
5.08.2017 ASA
José Esteban Castro | Foto: Acervo Pessoal
Embora
o senso comum nos leve a priorizar os elementos técnicos quando
refletimos sobre gestão e política de recursos hídricos, o coordenador
da Rede Waterlat-Gobacit e Investigador Principal do CONICET na
Argentina, José Esteban Castro defende que essas questões são muito mais
complexas, exigindo transdisciplinaridade e intersetorialidade.
Um bom exemplo disso é a tão falada ‘crise’ da água que vem atingindo os grandes centros urbanos brasileiros. Na maioria das vezes, a culpa é atribuída a falta das chuvas e até mesmo aos usuários comuns, devido ao mau uso. Não há uma reflexão mais aprofundada sobre a relação entre essa crise e o modelo desenvolvimentista, por exemplo. Para Esteban, “os problemas que enfrentamos têm fundamento principalmente político e não meramente técnico e/ou ambiental”.
Segundo o sociólogo, a escassez de água não pode ser reduzida a falta desse bem, mas sim a falta de acesso, que está intrinsicamente relacionada a desigualdade social. “Falar de desigualdade parece uma questão unicamente dos debates da esquerda ou do socialismo, mas não é. Isso é parte da teoria democrática da sociedade capitalista, embora eu queira uma sociedade melhor que a capitalista. (...) A própria democracia capitalista nos países centrais demanda uma equidade em determinados aspectos fundamentais. Por exemplo, não podemos aceitar a desigualdade baseada na cor da pele, ou por conta do lugar que você nasceu. O estado deve intervir para garantir condições básicas para todos. Quando falamos de desigualdade não falamos simplesmente de diferenças: alguns são mais altos, outros mais baixinhos. Falamos do que na teoria social democrática é chamado de desigualdades qualitativas, estruturais, que são inaceitáveis. Então, o que eu quero dizer é que ainda numa sociedade injusta e desigual como é a sociedade capitalista, os princípios da democracia capitalista demandam política públicas que garantam um acesso universal as condições básicas de reprodução da vida, entre elas, o acesso a água limpa”.
José Esteban defende que devemos ter cuidado para que a ‘crise’ da água não oculte ou interfira nos nossos esforços para diminuir essas desigualdades. “O problema mais importante que confrontamos agora são as lutas sociais e políticas que enfrentamos nos nossos países pela desigualdade, pelas injustiças, pelo não acesso aos bens comuns. Não temos guerra, mas temos conflitos e lutas contra essas desigualdades e injustiças. E o mais importante é olhar para isso”.
Confira a entrevista concedida por José Esteban Castro à Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), durante a participação dele no Encontro Democratização da Política e da Gestão da Água: um Desafio Transdisciplinar, ocorrido no último dia 18, na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), em Recife/PE. O evento fez parte das atividades preparatórias da IX Reunião Internacional da Rede Waterlat-Gobacit, que ocorrerá no período de 3 a 7 de setembro de 2018, em João Pessoa/PB.
ASA - Como as práticas locais de gestão da água podem fortalecer o debate global?
Esteban - Os temas das práticas de gestão de água têm sido extremamente relevantes porque de alguma forma temos perdido as boas práticas. Falamos muito disso, mas falamos de exemplos de boas práticas que já existiam com relação ao cuidado da água, por exemplo, e que tendem a desaparecer, em alguns casos, devido aos processos de organização, modernização e outras práticas de relacionamento com a água, que começam a mudar o comportamento das pessoas. Essa é uma questão: recuperar e proteger as boas práticas que existem em nossas comunidades. É um debate importante. E a introdução de novas boas práticas.
Outra questão é com relação ao entendimento sobre a qualidade da água e que também tem a ver com as crenças. Nas áreas rurais de alguns de nossos países, às vezes, a pessoa acha que se a água está no rio ela está limpa, mas se vem por uma tubulação já não está. Então elas preferem tomar água poluída do rio do que a água das tubulações, por conta do gosto do cloro, por exemplo. Isso exige um trabalho cuidadoso porque tem tudo a ver com questões culturais, que frequentemente as instituições públicas, os especialistas, e outros agentes a cargo destes temas não estão preparados para intervir com a suficiente sensibilidade para lidar com a diversidade cultural e as contradições que acontecem entre nossas comunidades e as estruturas de governo.
E um outro ponto está relacionado ao mau uso da água. Nas áreas semiáridas não é um problema tão comum, pela falta d’água, mas nos centros urbanos vemos as pessoas lavando calçadas com água tratada. As pessoas confundem a questão da água ser um bem comum, um direito, com o poder usar como bem quiser. E muito menos existe a ideia de que água é finita. Nas áreas rurais, sim, porque as pessoas estão mais próximas dessa realidade climática, embora nas áreas litorâneas e grandes cidades, as pessoas nem sabem de onde vem a água que elas usam.
ASA - Você fez uma reflexão no encontro sobre a escassez que tem tudo a ver com a experiência do Semiárido. Temos condições de viver no Semiárido a partir do que existe na região. Você pode explicar melhor esse princípio da escassez?
Esteban - Em geral, se trata de um conceito relativo. Aqui no próprio Nordeste isso existe, por exemplo, porque alguns estados têm uma precipitação mais alta do que outros. O Semiárido se caracteriza por escassez. Mas em que medida, em que ponto? Essa é uma das questões que está dada. O problema é que temos um conceito de escassez que é construído culturalmente, socialmente e politicamente; às vezes até construído pelos meios de comunicação. Em vez de tentar contribuir para desenvolver uma cultura de cuidado de água, de reuso, de água de chuva, se fomenta a ideia de escassez para se justificar grandes obras, para fornecer mais água, fomentando uma cultura de oferta e consumo. Sempre se diz: ‘há uma escassez de água. O Estado tem que trazer mais água aqui para nós’. Os colegas de nossa Rede na Espanha comentam a situação que vivem lá, um país fundamentalmente semiárido. Eles dizem que as políticas dominantes implicam que sempre haverá ‘escassez’ porque quando chega mais água através de grandes obras de infraestrutura como transposições de rios, por exemplo, as pessoas passam a cultivar uma área maior. Sempre vai faltar mais água porque eles seguem incrementando a área de cultivo por razões de lucro, não tem nenhum interesse em adaptar as práticas de agricultura às condições daquele local.
ASA – O Encontro Internacional da Rede Waterlat-Gobacit de 2018 ocorrerá no Brasil. Você pode explicar melhor como funciona e se há alguma relação com o Fórum Mundial de Água que vai ser também aqui no Brasil no ano que vem?
Esteban - Nossa rede é uma rede de pesquisa, ensino e também de intervenção prática sobre temas de política e da gestão de água. Nós fazemos uma reunião internacional regularmente. A próxima será aqui no Nordeste, na verdade, no litoral do Nordeste, será em João Pessoa, na Paraíba, embora nosso interesse seja discutir o Semiárido com muita força. Será de 3 a 7 de setembro de 2018. Ela não tem relação com o Fórum Mundial de Água. Será nossa reunião regular. O tema da reunião é ‘Água, Direitos e Utopias: quais são as prioridades para uma política e gestão democrática da água’. Vocês podem visitar nosso site e ficam convidados a participar: http://waterlat.org/pt/encontros/encontros-abertos/waterlat-gobacit-ix-2018/.
A rede Waterlat-Gobacit não participará do Fórum Mundial de Água
(FMA), que terá lugar em Brasília, em março de 2018. Participaremos sim
do Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) porque temos uma forte
crítica ao Fórum Mundial. A título pessoal, eu já participei uma vez em
2006, no México, fiz minha contribuição. Na minha experiência, apesar
dos organizadores do FMA dizerem que abrem um diálogo com todos os
atores, na verdade, eles tendem, na última instância, a defender certos
interesses que em nossa interpretação não são os da democratização, da
política e da gestão da água que nós defendemos. O Fórum Mundial da Água
termina aportando aos interesses de grandes corporações e das agências
internacionais de desenvolvimento que, por exemplo, fomentam a
privatização da água e dos serviços. Nós não estamos de acordo com isso.
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