Meio Ambiente & Desenvolvimento Humano

sábado, 8 de abril de 2017

Caça de Subsistência dentro e fora da lei: um debate necessário

((o))eco
quinta-feira, 06 abril 2017 21:33
Caça de subsistência. Foto: Divulgação.
Caça de subsistência. Foto: Divulgação.

É paradoxal, portanto, não discutir a caça de subsistência no Brasil, uma vez que há a necessidade de se criar mecanismos para seu controle, reduzindo assim seu impacto sobre as espécies caçadas, a exemplo do que tem sido feito para a pesca.


Com dimensões continentais, o Brasil abriga distintos e ricos ecossistemas, e uma sociobiodiversidade inigualável que depende destes ambientes. Proporcionalmente a estes atributos, nosso arcabouço jurídico ambiental é farto, em especial no que tange aos mecanismos voltados à proteção da natureza, prevendo de forma objetiva situações complexas, mas ao mesmo tempo deixando situações cotidianas descobertas de qualquer definição. Como resultado, vemos a interpretação individualizada de condutas, lesivas ou não, ao meio ambiente. Completamente dentro dessa esfera, a “caça” consiste em um dilema para todos os que profissionalmente se dedicam ao tema.

Historicamente a caça se confunde com a evolução do ser humano, com os registros de perseguição e captura de animais para uso como fonte alimentar e posteriormente com finalidade de procriação.
No mundo moderno, a despeito dos seus impactos inerentes às populações de animais, a caça também permeia o conjunto de ferramentas utilizadas no manejo, conservação e preservação da fauna. No Brasil, dependendo da região do país, sua “regulamentação” e prática seguem muitas vezes “acordos locais” informais, totalmente dependentes das experiências sociais coletivas, culturais e ecológicas dos grupos sociais envolvidos.

No meio acadêmico, existe o entendimento geral do conceito de caça como sendo uma prática de perseguição aos animais com a finalidade de sua captura ou abate. Este conceito, apesar de muito utilizado tecnicamente no Brasil, não está definido e devidamente categorizado em lei, causando transtornos históricos e gerando tabus que persistem em meio a debates infindáveis, como temos visto atualmente.

Seria hipocrisia negar que no Brasil a caça seja uma prática pouco freqüente ou difundida, independente da região do país. Todos já ouviram histórias ou relatos sobre caça. Há centenas de trabalhos científicos tratando do assunto, assim como existem experiências voltadas ao seu manejo. Infelizmente, a ausência de uma discussão aberta e devidamente subsidiada com informações técnico-científicas sobre o tema faz com que os impactos da atividade sejam pouco compreendidos pela grande maioria da sociedade, incluindo muitas vezes a comunidade científica. Assim, a cada dia que passa, perdemos oportunidades de desenvolvermos modelos viáveis que contribuam nas ações reais de conservação, considerando o manejo adequado da nossa fauna, garantindo assim a existência dessas espécies.

A falta de uma definição legal e a dificuldade de compreensão da complexidade do tema fazem com que as formas distintas de caça (furtiva, comercial, sanguinária, de controle, científica, esportiva e a de subsistência) sejam tratadas como se fossem uma coisa só, como vem sendo feito na esfera do Congresso Nacional atualmente. No entanto, todas elas carecem de conceituação legal devidamente embasada pelo conhecimento técnico-científico existente. A generalização do tema pode nos levar a julgamentos equivocados, como por exemplo aceitar que a caça de subsistência ou mesmo a científica, realizadas em caráter não predatório e com base em critérios claros de manejo que considerem a conservação das espécies animais e a boa saúde do ambiente, sejam execradas pura e simplesmente por critérios subjetivos, dependendo do ponto de vista do tomador de decisão.

Em relação à caça de subsistência, poderíamos afirmar que, com base na legislação vigente, ela “não existe”. Somente a Lei de Crimes Ambientais - 9605/98 em seu artigo 37 inciso I aventa não ser crime o abate de um animal, quando realizado “em estado de necessidade, para saciar a fome do agente ou de sua família”. Ainda que a caça de subsistência seja informalmente entendida como aquela praticada por indivíduo para a própria alimentação ou de sua família, o ato de “caçar para comer” não caracteriza obrigatoriamente um “estado de necessidade”. De maneira inversa um “estado de necessidade” não necessariamente descriminaliza a prática da caça. Ficamos desta forma reféns de pontos de vista e análises subjetivas do arcabouço legal existente.

A lei brasileira que trata de forma indireta a caça de subsistência sequer reside dentro das leis ambientais: o Estatuto do Desarmamento (Lei no 10.826/2003, artigo 6o, § 5o). Ele define de forma vaga, mas necessária do ponto de vista da segurança pública, o que é um “caçador de subsistência”.
É também notório o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (Lei nº 9985/2000 – SNUC), prevê a realização de estudos técnico-científicos sobre o manejo econômico sustentável de recursos faunísticos nas Reservas de Fauna. No entanto, até o presente momento nenhuma unidade de conservação desta categoria de manejo foi criada.

O SNUC também estabelece que as Unidades de Conservação de uso sustentável, tais como Reservas Extrativistas (RESEX), Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS) e subsidiariamente as Florestas Nacionais (Flona) têm como um dos objetivos assegurar os modos de vida tradicionais e o acesso ao uso de recursos naturais pelas famílias que ali vivem. Não há como dissociar o uso dos recursos naturais e a manutenção dos modos de vida tradicionais da atividade de caça, tendo em vista que a chegada do homem, como no caso da Amazônia, se confunde às atividades mais basais de subsistência e obtenção de proteína animal, o que obviamente incluem a caça e a pesca.

Por não tratar especificamente destes temas em seu conteúdo, a Lei do SNUC demanda naturalmente novos subsídios legais que a complementem, tratando especificamente das atividades que impliquem no uso da fauna e promovam o seu manejo adequado e em bases sustentáveis.

Curiosamente, a nossa Constituição Federal, estabelecida dez anos antes da Lei de Crimes Ambientais, deixou de forma muito explícita em seu artigo 24 Inciso VI a possibilidade de que os Estados Federativos formulem concorrentemente suas leis, desde que não flexibilize ou diminua a proteção ao meio ambiente. Neste caso a caça é incluída como competência concorrente. Ao mesmo tempo, a conhecida “Lei de proteção à fauna”, chamada por muitos de “Código de caça” (Lei N° 5.197/1967), estabeleceu no primeiro parágrafo de seu Artigo 1º que “Se peculiaridades regionais comportarem o exercício da caça, a permissão será estabelecida em ato regulamentador do Poder Público Federal”. Entretanto, o que vemos é que a legislação infra-constitucional, que deveria preencher lacunas de temas imprescindíveis como a caça, não é colocada em prática.

É paradoxal, portanto, não discutir a caça de subsistência no Brasil, uma vez que há a necessidade de se criar mecanismos para seu controle, reduzindo assim seu impacto sobre as espécies caçadas, a exemplo do que tem sido feito para a pesca. Um debate profundo e com bases técnicas sólidas minimizaria o conflito existente no âmbito da legislação federal existente e contraditória. Por exemplo, o artigo 1 da Lei 5.197/1967 proíbe “a utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha de animais silvestres” (Lei 5.197/1967), uma vez que não há permissão e regulamentação da atividade, mas admite a caça de subsistência (Lei 10.826/2003) quando cria a figura do caçador de subsistência. O artigo proíbe a caça profissional (Lei 5.197/1967) ao mesmo tempo em que prevê o manejo econômico da fauna silvestre (Lei nº 9985/2000). E ainda descriminaliza (ou permite?) o exercício da caça em “estado de necessidade” na Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), que por sua vez não é sinônimo de subsistência, gerando mais confusão.

No Brasil, somente o Estatuto do Índio (Lei 6001/1973) reconhece explicitamente o direito à caça pelo povos originários, em respeito à sua identidade, sua cultura e às suas necessidades alimentares, desde que tenham seu território reconhecido e homologado. No seu Art. 22, § 2°, é garantido “o exercício exclusivo da caça e da pesca nas áreas por eles ocupadas”. Entretanto, o acesso aos recursos naturais tradicionalmente utilizados por diversos outros grupos sociais, para garantir não somente sua sobrevivência física, mas também cultural, está garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (e pelo Decreto 5051/2004 que ratifica a mesma no Brasil), pela Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei 11346/2006) e, finalmente, pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Populações e Comunidades Tradicionais (Decreto 6040/2007).

É absolutamente inegável que a caça constitui um recurso natural tradicionalmente utilizado e importante para as populações supramencionadas. Portanto, mesmo não regulamentada, a caça é um direito assegurado para uma parcela da população brasileira que, via de regra, vive em áreas rurais sem acesso a políticas públicas básicas e, majoritariamente, ao emprego formal e ainda vivendo à margem da economia de mercado.

Populações dos demais grupos sociais que compõem o conjunto denominado populações tradicionais, e que em muitos casos também dependem da atividade para seu sustento, vivem há pelo menos cinqüenta anos em uma situação de insegurança jurídica e alimentar em função da não-regulamentação da prática de caça de subsistência no país. Esta é uma falha evidente do Estado, que por um lado reconhece seus modos de vida e por outro nega seu direito a manejar os recursos naturais dos quais dependem. Mais uma vez, do ponto de vista legal, esta situação paradoxal se acirra, ao não reconhecer este direito a quilombolas, extrativistas, e demais povos tradicionais.

Assim, mais do que nunca é preciso tratar o tema com a seriedade e a responsabilidade que requer, seja para garantir a conservação de nossa fauna, seja para respeitar os direitos dos grupos sociais que dependem de seu uso para sua subsistência.

Disponível: http://www.oeco.org.br/colunas/colunistas-convidados/caca-de-subsistencia-dentro-e-fora-da-lei-um-debate-necessario/
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VIDHA LINUS

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