Meio Ambiente & Desenvolvimento Humano

terça-feira, 29 de agosto de 2017

CNBB e coalizão de bispos de 9 países condenam abertura de área na Amazônia à mineração

Para religiosos, decisão do governo Michel Temer de extinguir a Renca foi "antidemocrática" e significa "uma ameaça política para o Brasil inteiro".

Por Ricardo Senra, BBC
 
 
Líderes das principais confederações de bispos do Brasil e de outros oito países amazônicos classificam a decisão do governo brasileiro de extinguir a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca), anunciada em decreto na semana passada, como "antidemocrática" e "uma ameaça política para o Brasil inteiro".  

Extinção de reserva na Amazônia pegou ambientalistas e centros de pesquisa brasileiros de surpresa (Foto: Reprodução/Rede Amazônica)
Extinção de reserva na Amazônia pegou ambientalistas e centros de pesquisa brasileiros de surpresa (Foto: Reprodução/Rede Amazônica) 

Em nota de repúdio que será divulgada nesta segunda-feira, a Igreja Católica diz que a extinção da Renca "cede aos grandes empresários da mineração" e não incluiu "nenhuma consulta aos povos indígenas e comunidades tradicionais foi realizada, como manda o Artigo 231 da Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT)". 

O documento é assinado por uma coalizão formada por aproximadamente 200 bispos católicos de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Venezuela e Suriname.
O governo do presidente Michel Temer argumenta que a extinção da Renca vai revitalizar a mineração brasileira, que representa 4% do PIB e produziu o equivalente a US$ 25 bilhões (R$ 78 bilhões) em 2016, mas que vinha sofrendo com a redução das taxas de crescimento global e com as mudanças na matriz de consumo, voltadas hoje para a China. 

Os líderes católicos, em contrapartida, avaliam que o governo cedeu "às pressões da bancada de parlamentares vinculados às companhias extrativas que financiam suas campanhas" e conclama deputados e senadores a se colocarem contra a decisão presidencial. 

"Convocamos as senhoras e os senhores parlamentares a defenderem a Amazônia, impedindo que mais mineradoras destruam um dos nossos maiores patrimônios naturais. Não nos resignemos à degradação humana e ambiental." 

A nota de repúdio, à qual a BBC Brasil teve acesso, é assinada pelos cardeais dom Cláudio Hummes (presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica - Repam e da Comissão Episcopal para a Amazônia) e dom Erwin Kräutler (presidente da Repam-Brasil e secretário da Comissão Episcopal para a Amazônia). 

A Repam é formada por bispos de 99 dioceses distribuídas nos nove países que têm áreas de floresta amazônica em seus territórios. 

A nota foi assinada em Brasília após uma série de discussões entre as maiores lideranças da Igreja Católica no continente. Também participaram do processo entidades que fundaram a Repam em 2014, como a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Episcopal Latino-americano (CELAM), formado por líderes católicos de 22 países latino-americanos.

Caminhos legais

A BBC Brasil apurou que bispos da CNBB e da Repam estão conversando com membros do Ministério Público sobre caminhos legais de cancelamento do decreto.
Uma possível ação conjunta entre católicos, promotores e procuradores deve ser divulgada ainda nesta semana. 

A Repam é formada por bispos de 99 dioceses distribuídas nos nove países que têm áreas de floresta amazônica em seus territórios  (Foto: Repam)
A Repam é formada por bispos de 99 dioceses distribuídas nos nove países que têm áreas de floresta amazônica em seus territórios (Foto: Repam)
 
Criticado por políticos da base, ambientalistas, movimentos sociais, artistas e agora pelo alto clero da Igreja, o Ministério de Minas e Energia garante que o decreto cumprirá legislações específicas sobre a preservação da área. Ou seja, áreas de proteção integral (onde não é permitida a habitação humana) e terras indígenas serão mantidas.  

Mas as lideranças católicas não estão convencidas. 

"Ao contrário do que afirma o governo em nota, ao abrir a região para o setor da mineração, não haverá como garantir proteção da floresta, das unidades de conservação e muito menos das terras indígenas - que serão diretamente atingidas de forma violenta e irreversível", avalia a coalizão de bispos latino-americanos. 

 (Foto: BBC)
(Foto: BBC)
Dom Cláudio Hummes e dom Erwin Kräutler, signatários da carta em nome dos bispos, são membros de alas progressistas da Igreja Católica no Brasil. 

Com títulos de doutor honoris causa e condecorações do Vaticano, ambos atuam em defesa de minorias em pastorais de pequenas cidades em toda a Amazônia. 

"É terrível o que está acontecendo e pior ainda com a conivência e o apoio explícito do governo Temer. Temer mais uma vez está violando a própria Constituição Federal, que no seu artigo 231 exige consulta prévia aos povos indígenas quando se trata de qualquer empreendimento em seus territórios. O presidente da República não está acima da Constituição Federal. Por isso a assinatura do presidente é inconstitucional", disse dom Erwin à BBC Brasil nesta segunda-feira. 

"Vivo há 52 anos na Amazônia e por isso conheço bem essa região. Lamentavelmente, mais uma vez a Amazônia é degradada a uma mera província mineral que se explora sem mínimos escrúpulos. Se explora o solo e subsolo e o que sobra no final é uma paisagem lunática de crateras. Os povos que aqui vivem não contam. São ameaçados inclusive em sua sobrevivência." 

Na avaliação dos bispos, o resultado da presença da mineração é um rastro de destruição, por mais que cuidados socioambientais sejam tomados. 

"Basta observar o rastro de destruição que as mineradoras brasileiras e estrangeiras têm deixado na Amazônia nas últimas décadas, com desmatamento, poluição, comprometimento dos recursos hídricos pelo alto consumo de água para a mineração e sua contaminação com substâncias químicas, aumento de violência, droga e prostituição, acirramento dos conflitos pela terra, agressão descontrolada às culturas e modos de vida das comunidades indígenas e tradicionais, com grandes isenções de impostos, mas mínimos benefícios para as populações da região", diz a nota oficial dos líderes católicos.

Papa Francisco

No último sábado, a BBC Brasil revelou que o governo anunciou o fim da Renca a donos de mineradoras canadenses em março - cinco meses antes da assinatura oficial, divulgada pelo Diário Oficial. 

Após optar por não responder às perguntas enviadas pela reportagem, o Ministério de Minas e Energia reconheceu em uma nota, divulgada nesta segunda-feira, que o assunto foi tema do encontro com os canadenses e disse que "o assunto já estava bastante amadurecido dentro do governo, e tratado publicamente, quando foi divulgado durante a maior feira de mineração do mundo, a PDAC, no início de março de 2017, em Toronto, no Canadá". 

A pasta não comentou as críticas de não ter procurado ambientalistas, acadêmicos e movimentos sociais para discutir o tema e diz que "uma rápida pesquisa a qualquer site de buscas pode ajudar na coleta de informações corretas sobre o assunto". 

Além de uma série de entrevistas, que incluiu pessoas presentes no evento, a BBC Brasil fez pesquisas tanto em ferramentas de busca quanto nos próprios registros do site do ministério.
Há apenas três referências à Renca entre o início do governo Temer e a assinatura do decreto, na semana passada. Todas as menções no site do governo são posteriores à reunião no Canadá - e o ministério não cita em nenhum momento a reserva em seu material de divulgação sobre a visita oficial de março.

'Interesses econômicos'

A nota assinada pelos bispos cita falas recentes do Papa Francisco sobre a Amazônia e que criticam "uma economia de exclusão e desigualdade". 

"Há propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos interesses econômicos das corporações internacionais", afirmou o papa em encíclica publicada pelo Vaticano em junho de 2015.
"Digamos não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta economia destrói a mãe terra", disse Francisco no mesmo mês na Bolívia, em discurso a movimentos sociais, agora citado na nota de repúdio dos bispos ao decreto de Temer. 

Os bispos também lembram a defesa feita pelo papa de que as comunidades tradicionais sejam ouvidas. 

"No debate, devem ter lugar privilegiado os moradores locais, aqueles mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o interesse econômico imediato." 

E associam o gesto do presidente Temer ao "drama de uma política focalizada nos resultados imediatos", que "torna necessário produzir crescimento a curto prazo", ambas citações do papa Francisco.

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