Para religiosos, decisão do governo Michel Temer de extinguir a Renca foi "antidemocrática" e significa "uma ameaça política para o Brasil inteiro".
Por Ricardo Senra, BBC
Líderes das principais confederações de bispos do Brasil e de outros
oito países amazônicos classificam a decisão do governo brasileiro de
extinguir a Reserva Nacional de Cobre e seus Associados (Renca),
anunciada em decreto na semana passada, como "antidemocrática" e "uma
ameaça política para o Brasil inteiro".
Em
nota de repúdio que será divulgada nesta segunda-feira, a Igreja
Católica diz que a extinção da Renca "cede aos grandes empresários da
mineração" e não incluiu "nenhuma consulta aos povos indígenas e
comunidades tradicionais foi realizada, como manda o Artigo 231 da
Constituição Federal de 1988 e a Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT)".
O documento é assinado por uma coalizão formada por aproximadamente 200
bispos católicos de Brasil, Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana
Francesa, Peru, Venezuela e Suriname.
O governo do presidente Michel Temer argumenta que a extinção da Renca
vai revitalizar a mineração brasileira, que representa 4% do PIB e
produziu o equivalente a US$ 25 bilhões (R$ 78 bilhões) em 2016, mas que
vinha sofrendo com a redução das taxas de crescimento global e com as
mudanças na matriz de consumo, voltadas hoje para a China.
Os líderes católicos, em contrapartida, avaliam que o governo cedeu "às
pressões da bancada de parlamentares vinculados às companhias
extrativas que financiam suas campanhas" e conclama deputados e
senadores a se colocarem contra a decisão presidencial.
"Convocamos as senhoras e os senhores parlamentares a defenderem a
Amazônia, impedindo que mais mineradoras destruam um dos nossos maiores
patrimônios naturais. Não nos resignemos à degradação humana e
ambiental."
A nota de repúdio, à qual a BBC Brasil teve acesso, é assinada pelos
cardeais dom Cláudio Hummes (presidente da Rede Eclesial Pan-Amazônica -
Repam e da Comissão Episcopal para a Amazônia) e dom Erwin Kräutler
(presidente da Repam-Brasil e secretário da Comissão Episcopal para a
Amazônia).
A Repam é formada por bispos de 99 dioceses distribuídas nos nove
países que têm áreas de floresta amazônica em seus territórios.
A nota foi assinada em Brasília após uma série de discussões entre as
maiores lideranças da Igreja Católica no continente. Também participaram
do processo entidades que fundaram a Repam em 2014, como a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Episcopal
Latino-americano (CELAM), formado por líderes católicos de 22 países
latino-americanos.
Caminhos legais
A BBC Brasil apurou que bispos da CNBB e da Repam estão conversando com
membros do Ministério Público sobre caminhos legais de cancelamento do
decreto.
Uma possível ação conjunta entre católicos, promotores e procuradores deve ser divulgada ainda nesta semana.
Criticado por políticos da base, ambientalistas, movimentos sociais,
artistas e agora pelo alto clero da Igreja, o Ministério de Minas e
Energia garante que o decreto cumprirá legislações específicas sobre a
preservação da área. Ou seja, áreas de proteção integral (onde não é
permitida a habitação humana) e terras indígenas serão mantidas.
Mas as lideranças católicas não estão convencidas.
"Ao contrário do que afirma o governo em nota, ao abrir a região para o
setor da mineração, não haverá como garantir proteção da floresta, das
unidades de conservação e muito menos das terras indígenas - que serão
diretamente atingidas de forma violenta e irreversível", avalia a
coalizão de bispos latino-americanos.
Dom Cláudio Hummes e dom Erwin Kräutler, signatários da carta em nome
dos bispos, são membros de alas progressistas da Igreja Católica no
Brasil.
Com títulos de doutor honoris causa e condecorações do Vaticano, ambos
atuam em defesa de minorias em pastorais de pequenas cidades em toda a
Amazônia.
"É terrível o que está acontecendo e pior ainda com a conivência e o
apoio explícito do governo Temer. Temer mais uma vez está violando a
própria Constituição Federal, que no seu artigo 231 exige consulta
prévia aos povos indígenas quando se trata de qualquer empreendimento em
seus territórios. O presidente da República não está acima da
Constituição Federal. Por isso a assinatura do presidente é
inconstitucional", disse dom Erwin à BBC Brasil nesta segunda-feira.
"Vivo há 52 anos na Amazônia e por isso conheço bem essa região.
Lamentavelmente, mais uma vez a Amazônia é degradada a uma mera
província mineral que se explora sem mínimos escrúpulos. Se explora o
solo e subsolo e o que sobra no final é uma paisagem lunática de
crateras. Os povos que aqui vivem não contam. São ameaçados inclusive em
sua sobrevivência."
Na avaliação dos bispos, o resultado da presença da mineração é um
rastro de destruição, por mais que cuidados socioambientais sejam
tomados.
"Basta observar o rastro de destruição que as mineradoras brasileiras e
estrangeiras têm deixado na Amazônia nas últimas décadas, com
desmatamento, poluição, comprometimento dos recursos hídricos pelo alto
consumo de água para a mineração e sua contaminação com substâncias
químicas, aumento de violência, droga e prostituição, acirramento dos
conflitos pela terra, agressão descontrolada às culturas e modos de vida
das comunidades indígenas e tradicionais, com grandes isenções de
impostos, mas mínimos benefícios para as populações da região", diz a
nota oficial dos líderes católicos.
Papa Francisco
No último sábado, a BBC Brasil revelou que o governo anunciou o fim da
Renca a donos de mineradoras canadenses em março - cinco meses antes da
assinatura oficial, divulgada pelo Diário Oficial.
Após optar por não responder às perguntas enviadas pela reportagem, o
Ministério de Minas e Energia reconheceu em uma nota, divulgada nesta
segunda-feira, que o assunto foi tema do encontro com os canadenses e
disse que "o assunto já estava bastante amadurecido dentro do governo, e
tratado publicamente, quando foi divulgado durante a maior feira de
mineração do mundo, a PDAC, no início de março de 2017, em Toronto, no
Canadá".
A pasta não comentou as críticas de não ter procurado ambientalistas,
acadêmicos e movimentos sociais para discutir o tema e diz que "uma
rápida pesquisa a qualquer site de buscas pode ajudar na coleta de
informações corretas sobre o assunto".
Além de uma série de entrevistas, que incluiu pessoas presentes no
evento, a BBC Brasil fez pesquisas tanto em ferramentas de busca quanto
nos próprios registros do site do ministério.
Há apenas três referências à Renca entre o início do governo Temer e a
assinatura do decreto, na semana passada. Todas as menções no site do
governo são posteriores à reunião no Canadá - e o ministério não cita em
nenhum momento a reserva em seu material de divulgação sobre a visita
oficial de março.
'Interesses econômicos'
A nota assinada pelos bispos cita falas recentes do Papa Francisco
sobre a Amazônia e que criticam "uma economia de exclusão e
desigualdade".
"Há propostas de internacionalização da Amazônia que só servem aos
interesses econômicos das corporações internacionais", afirmou o papa em
encíclica publicada pelo Vaticano em junho de 2015.
"Digamos não a uma economia de exclusão e desigualdade, onde o dinheiro
reina em vez de servir. Esta economia mata. Esta economia exclui. Esta
economia destrói a mãe terra", disse Francisco no mesmo mês na Bolívia,
em discurso a movimentos sociais, agora citado na nota de repúdio dos
bispos ao decreto de Temer.
Os bispos também lembram a defesa feita pelo papa de que as comunidades tradicionais sejam ouvidas.
"No debate, devem ter lugar privilegiado os moradores locais, aqueles
mesmos que se interrogam sobre o que desejam para si e para os seus
filhos e podem ter em consideração as finalidades que transcendem o
interesse econômico imediato."
E associam o gesto do presidente Temer ao "drama de uma política
focalizada nos resultados imediatos", que "torna necessário produzir
crescimento a curto prazo", ambas citações do papa Francisco.
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