Meio Ambiente & Desenvolvimento Humano

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Mais couro na parada

As passarelas estão prestes a serem invadidas por um couro desenvolvido com técnicas de biotecnologia

The Economist
01 Setembro 2017 | 03h00
Mais couro na parada
Curtume em SP. Indústria do couro movimenta US$ 100 bilhões/ano  Foto: VALÉRIA GONÇALVEZ/ESTADÃO
A manufatura de couro é um ofício antiquíssimo. O artefato de couro mais antigo de que se tem notícia é um calçado de 5,5 mil anos, encontrado em uma caverna na Armênia. Mas pinturas em túmulos egípcios mostram que há 7 mil anos o couro já era transformado em uma infinidade de utensílios: de sandálias a baldes e equipamentos militares. Não é exagerado dizer que a utilização de peles animais com a função de abrigo e vestuário provavelmente remonta a centenas de milhares de anos.

Fabricar couro também é, por outro lado, uma atividade bastante desagradável. Na Londres do século 18, as peles em estado de putrefação que eram deixadas de molho em uma solução de urina e cal, a fim de separar o couro dos restos de carne do animal, e a subsequente aplicação de fezes de cachorro, para amaciá-las e preservá-las, produzia tamanha fedentina que a atividade foi proibida na cidade. Em países como Índia e Japão, o ofício marcava negativamente tanto os lugares como as pessoas que a ele se dedicavam, a ponto de só poder ser praticado por párias sociais, como os dalit e os burakumin.

Os métodos modernos de produção não são tão nauseabundos como os empregados no século 19. Fezes de cachorro, cal e urina foram substituídos por cromo e outras substâncias químicas. Mas algumas dessas substâncias também têm propriedades bastante cáusticas. E, por utilizar peles de animais como matéria-prima, a indústria do couro atualmente é vulnerável a sensibilidades no tocante à relação dos seres humanos com outros animais. Contra tais considerações, ergue-se um fato de natureza comercial: o couro, valorizado por sua durabilidade e maleabilidade, é um negócio que movimenta US$ 100 bilhões por ano.
Esses elementos contrastantes fazem da fabricação de couro alvo tentador para intervenções tecnológicas. E as peles curtidas de animal estão de fato prestes a enfrentar um novo concorrente. A ameaça não vem, como se poderia supor, de um substituto fabricado com polímeros sintéticos, e sim de algo que, em muitos aspectos, é a mesma coisa que o couro natural. A diferença é que, em vez de sair de animais, esse couro é cultivado em fábricas.

Muuu! A mais avançada praticante da arte ainda experimental de cultivar couro é a empresa americana Modern Meadow. Este mês, a companhia se mudou do Brooklyn, em Nova York, onde sua equipe de 60 funcionários vinha desenvolvendo o novo material, para um laboratório em Nutley, Nova Jersey, onde terão início os testes de produção. A Modern Meadow, que captou mais de US$ 50 milhões junto a investidores e colabora com algumas outras empresas dos segmentos coureiro, calçadista, moveleiro e automotivo, espera colocar esse novo material no mercado dentro de dois anos.

O couro cultivado industrialmente promete algumas vantagens em relação ao extraído de animais. Uma delas é a produção de folhas retangulares do material, oferecendo muito mais conveniência do que as peças naturais, que acompanham as formas irregulares dos animais dos quais são arrancadas. Outra vantagem é maior consistência: o couro cultivado não apresenta cicatrizes, marcas e outras imperfeições que o couro natural costuma ter. Tampouco varia de animal para animal. São características que reduzem o desperdício e aumentam a qualidade. Além disso, devem aplacar a ira dos que não concordam com o sacrifício de animais para que as pessoas possam calçar bons sapatos e sentar em cadeiras com estofamentos luxuosos.

Para cultivar seu couro, a Modern Meadow utiliza uma variedade de fungo formulada geneticamente para produzir uma proteína idêntica ao colágeno bovino. O colágeno é a principal proteína estrutural do corpo dos animais, conferindo força e elasticidade à pele. É constituído de longas cadeias de aminoácidos, esses componentes elementares de todas as proteínas, que se entrelaçam de três em três para formar hélices triplas, as quais, por sua vez, enovelam-se para produzir fibras.

Nas peles animais, tanto a síntese das cadeias iniciais de aminoácidos como seu subsequente entrançamento em fibra é obra de um tipo especial de célula chamado fibroblasto. Uma das técnicas fundamentais que os bioengenheiros da Modern Meadow dominaram, ainda que relutem em falar detalhadamente sobre o assunto, é estimular que as cadeias de aminoácidos produzidas pelos fungos se entremeiem para formar fibras sem que seja necessária a intervenção de fibroblastos. Uma vez obtidas as fibras, não é difícil fazer com que elas se organizem em camadas que são, para todos os efeitos e fins, peças de couro cru. Essas peças, por sua vez, podem ser submetidas aos procedimentos tradicionais de curtimento, tingimento e acabamento.

Segundo Dave Williamson, diretor de tecnologia da empresa, o processo foi concebido de forma a poder ser facilmente adaptado a linhas de produção em plantas industriais existentes. Williamson trabalhava para a gigante do setor químico DuPont e, em razão disso, tem muita experiência com os equipamentos empregados nesse tipo de produção. Também é possível, diz ele, produzir o colágeno em grandes instalações centralizadas e, então, transportá-lo para fábricas e curtumes locais para a transformação em couro final. Em relação ao custo, o novo material deve ser tão competitivo como o couro natural.

A Modern Meadow, segundo Williamson, não pretende imitar o couro, e sim produzir um tipo de material totalmente novo, que terá um nome comercial, que será anunciado no próximo mês, durante um desfile de moda no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA). Na ocasião também será apresentada uma camiseta, primeira peça de roupa com o novo material. Com a biotecnologia invadindo as passarelas, o couro estará dando seus primeiros e hesitantes passos para se distanciar do abatedouro. / TRADUÇÃO DE ALEXANDRE HUBNER
 
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